HISTORIA DA ORIGEM ESTABELECIMENTO DA INQUISIÇÃO EM PORTUGAL POR A. HERCULANO Decima edição definitiva conforme com as edições da vida do autor dirigida por DAVID LOPES Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa TOMO II LIVRARIA BERTRAND LISBOA LIVRARIA FRANCISCO ALVES RIO X>E JAXEIRO — S. PAULO BELO HORIZONTE Digitized by the Internet Archive in 2010 with funding from University of Toronto http://www.archive.org/details/historiadaorige02herc JHLISTORIA DA ORIGEM h ESTABELECIMENTO DA INQUISIÇÃO HISTORIA DA ORIGEM E ESTABELECIMENTO DA INQUISIÇÃO EM PORTUGAL POR A. HERCULANO Decima edição definitiva conforrae com as edições da vida do autor dirigida por DAVID LOPES Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa TOMO II LIVRARIA BERTRAND 73 — Rua Garrett, — 75 LISBOA LIVRARIA FRANCISCO ALVES Rio DE JANEIRO S. PAULO — BELO HORISONTE COMrosio E IMPRESSO NA IISIPRENSA PORTUGAL-BRASIL Rua da Alegria, 30 — Lisboa Livfto ;v LIVRO IV Bulia de perdão de 7 de abril de 1533. Apprecia- ção delia. — Procedimento da corte de Portugal. — Negociações com o papa em Marselha. — Envia- tura de D. Henrique de Meneses, e instrucções da- das ao arcebisto do Funchal. — Diligencias balda- das em Roma para annullar o perdão. Insistência dos embaixadores. Protrahem-se os debates. O papa resolve difinitivamente manter a bulia de perdão. Breve de 2 de abril de 1534, — Tentativas de transacção propostas por D. Henrique de Mene- ses.— Procedimento do arcebispo do Funchal, suas relações com Duarte da Paz, e traições deste. — Resistência em Portugal ao cumprimento da bulia de 7 do abril, e perseguições contra os con- versos.— Breve de 26 de julho. — Morte de Cle- mente VII e eleição de Paulo iii. Caracter do novo papa. — Renovam-se as negociações. — Intervenção do embaixador hespanhol.— O papa manda sus- pender os eífeitos dos breves de 2 de abril e 26 de julho.— Novos debates sobre a bulia de 7 de abril.— Transacção proposta pela corte de Portu- gol e bases ofterecidas para ella. — Intrigas em 8 HISTORIA DA INQUISIÇÃO Roma. Progresso da lucta, e resolução final sobre as modificações do perdão e sobre o restabeleci- mento do tribunal da fé.— Conselhos de D. Henri- que de Meneses e do arcebispo a elrei acerca desta matéria. — Dobrez da cúria romana.— Accu- sações de Sinigaglia contra o governo português. — Despeito mutuo das duas cortes. — Ajustes ver- gonhosos do núncio com os christãos-novos. — Elrei pensa em transigir com os conversos para que acceitem a Inquisição modificada— Reacção do espirito de intolerância. — Revalida-se por mais três annos a lei de 14 de junho de 1532. — Breve de 20 de julho de 1535 annullando os eífeitos dessa lei. — Diligencias da corte de Portugal para obter a rovocação de Sinigaglia, e instrucçôes aos embai- xadores para repetirem as tentativas de accordo. — Idéa de fazer com que Carlos V intervenha energicamente na questão. — Novas intrigas. — Deslealdade do arcebispo.— Irritação extrema do papa. — Bulia de 12 de outubro revalidando e am- pliando a de 7 de abril de 1.532.— D. Martinho de Portugal é desmascarado. Mutua malevolencia en- tre elle e D. Henrique de Meneses. — Influencia da bulia de 12 de outubro em Portugal. A suspensão do estabelecimento do tribu- nal da fé em em Portugal era apenas um allivio temporário que se concedia aos desdi- tosos hebreus. Como vimos, a bulia pontifícia indicava de modo assas explicito que, dadas certas circumstancias, a anterior concessão se renovaria, A espada de Damocles ficara HISTORIA DA INQUISIÇÃO 9 pendente sobre a raça proscripta. Assim, em- bora procurasse conciliar a benevolência d'e]rei trahindo a causa em que estava empe- nhado e, até, para melhor disfarçar a sua des- lealdade e conduzir os occultos meneios em que se embrenhara, Duarte da Paz devia de- dicar-se activamente a sollicitar o perdão dos seus co-religionarios pelo que respeitava ao possado. Fora o que fizera e, embora repel- lido por Santiquatro, obtivera, conforme dis- semos, a dicisiva protecção da maioria dos cardeaes. Obstava a resistência de Pucci (1) e a do embaixador português, a quem, pelo menos, cumpria guardar as apparencias do zelo, se na realidade o não tinha. Uma cir- cumstancia, porém, veio fazer triumphar a causa dos christãos-novos, e foi o ausentar- se temporariamente de Roma o cardeal San- tiquatro. Aproveitou-se o ensejo. Num consis- tório celebrado nesse meio tempo deu-se de- ferimento ás supplicas dos conversos, recu- sando o papa admittir como parte neste ne- gocio o embaixador português (2), e a 7 de (1) Caria de Santiquatro a D. João III, na G. 2, M. 5, N." 51, no Arch. Nac. (2) «O modo que se nisso teve é individo e desor- denado, querer passar as ditas provisões (as da 10 HISTORIA DA INQUISIÇÃO abril de 1533 expediu-se, emfim, a bulia de perdão, que completava e parecia verificar de- finitivamente o favor transitório obtido pelo diploma de 17 de outubro do anno anterior. Na bulia de 7 de abril o papa rememorava a do estabelecimento da Inquisição e os fun- damentos propostos pela corte de Portugal, em que ella se estribava, e alludia ao breve de 17 de outubro, sem expressar os seus mo- tivos ; porque esse acto ficava virtualmente justificado pelas razões que legitimavam as providencias agora tomadas. O primeiro facto que se estabelecia como base para as provi- sões da bulia era o da conversão forçada dos judeus, facto sobre que se guardara silencio na supplica para se concederem os poderes de inquisidor-mór ao minimo Fr. Digo da Silva, e que, portanto, invalidava a bulia de 17 de dezembro de 1531, pelo vicio de subre- pção. Clemente vii dividia em duas categorias os judeus e mouros portugueses; uma da- quelles que haviam sido obrigados á força a receber o baptismo ; outra dos que tinham voluntariamente entrado no grémio da igreja, 1 Hl lia de perdão) a petição das partes sem querer ouvir primeiro o embaixador». Minuta d'Instrucç. á D. Maslinlio, G. 2, M. 2, N." 3.5. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 11 OU que, filhos de conversos, haviam s^do bap- tisados na infância com annuencia de seus pães. Quanto aos primeiros, a bulia de per- dão reproduzia no seu preambulo as doutri- nas dos antigos conselheiros de D. Manuel, e nomeiadamente do bispo do Algarve, D. Fer- nando Coutinho. «Não devem — dizia o papa — ser contados como membros da igreja os que foram baptisados violentamente, e elles teriam todo o direito de se queixarem de ser corrigidos e castigados como christãos, com quebra dos princípios da justiça e equidade». Quanto aos outros espontaneamente conver- tidos, ou procreados por pães christãos, con- siderado o tracto em que viviam com aquel- les cuja conversão fora fingida, e o poder das suggestões diabólicas, entendia que, no caso de serem verdadeiras as accusações levanta- das contra elles, convinha que fossem tracta- dos com a brandura e commisseração pro prias do espirito evangélico, antes de serem punidos com o rigor do gladio espiritual, ao passo que reputava cousa atroz tolerar perse- guições e insultos contra os que, sincera- mente entrados no grémio catholico, se ti- nham tornado suspeitos só pela circumstancia de procederem de pães ou avós judeus. A' vista destas ponderações, cuja solidez era in- 12 HISTORIA DA INQUISIÇÃO dispLilavel, Ciemente vii avocava a si todas as causas de heresia, fossem ellas quaes fossem, e em qualquer estado que estivessem, sem excepção de nenhum foro ou tribunal, e an- nullava todos os processos, salvo os de con- demnados como relapsos, que não seriam fá- ceis de achar, dado o pouco tempo que a Inquisição tinha de existência. Declarava (aliás com bem pouca verdade) que procedia assim de motu-proprio e espontânea vontade, sem que nisso interviessem supplicas dos chris- tãos-novos, nem instancias de ninguém. Para se verificarem os effeitos da bulia, estabele- cia-se a forma de obter o perdão. Marco delia Ruvere era incumbido de publicar solemne- mente em Portugal, por si ou por seus dele- gados, aquella resolução pontifícia em todas as dioceses e povoações do reino e conquis- tas. Depois da publicação, durante três meses para os presentes e quatro para os ausentes (ficando aliás ao arbítrio do núncio encurtar ou estender este praso), seriam recebidos á reconciliação todos e quaesquer culpados de crimes contra a fé, confessando as suas cul- pas ao representante da corte de Roma ou aos sacerdotes que elle para isso deputasse. Os nomes e appelidos dos reconciliados de- veriam ser escriptos pelos respectivos con- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 13 fessores num livro ou caderno. Aquelles re- gistos ficavam constituindo, digamos assim, para esses culpados, quer christãos-novos quer não, o livro da vida. Qualquer delles que fizesse esta demonstração seria por esse facto absolvido. Designavam-se cuidadosa e especi- ficadamente as diversas situações em que poderiam achar-se aquelles a quem a conces- são era applicavel, para que ninguém fosse excluído do beneficio do perdão. Naturaes ou extrunhos domiciliados no paiz, homens ou mulheres, seculares ou ecclesiasticos de qual- quer graduação, pessoas livres ou encarcera- das, réus sentenciados ou não, accusados ou simplesmente diffamados de heresia, por mais condemnavel que ella fosse, blasphemos, sacrílegos, a todos e a tudo se estendia a absolvição pontifícia. Como, porém, para se cumprirem as condições do perdão era ne- cessário que os que delle careciam estives- sem no pleno uso dos seus direitos civis, ordenava se na bulia a immediata soltura dos presos e detidos, e a faculdade de voltarem á pátria os degredados e banidos, não come- çando a correr o praso de reconciliação para os encarcerados senão do dia em que fossem postos em liberdade, e para os desterrados senão daquelle em que se lhes expedissem os 14 HISTORIA DA INQUISIÇÃO salvo-conduclos precisos para poderem voltar aos seus lares. Os que se aproveitassem do beneficio da bulia ficariam hábeis para con- servarem quaesquer dignidades ecclesiasticas, ainda as mais elevadas, se delias estavam ou tinham ficado revestidos, e também para as obterem de futuro, devendo ser admittidos sem embaraço algum ás ordens sacras. Sendo seculares, tiravam-se-lhes todas as notas de infâmia, de modo que igualmente ficassem hábeis para servir cargos públicos e receber honras, distincções e mercês. Uma das provi- sões mais importantes da bulia era a que se referia aos bens dos processados. Annullando quaesquer sentenças proferidas contra os christãos-novos, e com ellas os seus effeitos, restituía aos réus os bens que lhes houvessem sido sequestrados ou confiscados e que ainda não estivessem definitivamente incorporados no fisco. O núncio ou os seus delegados de- viam passar certidões dos registos dos per- doados aos que as pedissem, recommendan- do-se que taes cédulas fossem' gratuitas, e não servissem de pretexto a exacção alguma. Aquellas cédulas seriam um titulo para o re- conciliado não ser perseguido. O que antes de vir buscar o perdão tivesse já sido culpado e penitenciado ou reconciliado pela Inquisição, HISTORIA DA INQUISIÇÃO 15 e depois houvesse recahido na heresia e o confessasse agora, não deviam por isso repu- tá-lo relapso, porque toda a criminalidade an- terior ficaria completamente expungida. Aos próprios relapsos julgados como taes dava-se ainda um meio de salvação, a revista do pro- cesso pelo núncio. Só depois de confirmada a sentença nesta ultima instancia se lhes appli- caria a pena. Não o sendo, reduzia-se tudo para o réu a uma penitencia secreta, pela quali do mesmo modo que nos outros casos tam- bém já definitivamente julgados, devia ser substituída a penitencia publica, abjurando primeiramente o confesso os seus erros con- forme as leis da igreja. Se depois do perdão reincidissem, applicar-se-lhes-hiam as devidas penas; mas, provando elles que o baptismo fora forçado, essas penas nunca seriam as de- cretadas contra os relapsos. Aquelles de quem constasse ao núncio que eram publicamente infamados, posto que não convencidos, do crime de heresia, podiam justificar-se perante elle secretamente com duas ou três testemu- nhas idóneas, sem formulas judiciaes, e, se entendessem que deviam abjurar, podiam fa- zê-lo do mesmo modo em segredo. Final- naímente, se houvesse alguns que deixassem passar o praso do perdão sem o soUicitarem 16 HISTORIA DA INQUISIÇÃO e quizessem depois obtê-io, lomar-se-hia co- nhecimento do negocio na nunciatura, e defe- rir-se-hia este á cúria romana para o resolver, ficando tanto os inquisidores como os ordina- narios inhibidos por um anno de procederem contra taes culpados. Para que todas estas providencias tivessem o devido effeilo, o papa fulminava a excommunhão, a suspensão e o interdicto contra todos os juizes, de um e de outro foro, e contra todas as dignidades eccle- siasticas, sem excepção de jerarchia, ou con- tra outros quaesquer individuos que obstas- sem directa ou indirectamente á execução da bulia, prohibindo que a esta se attribuisse o defeito de subrepticia, e negando desde logo a validade a quaesquer excepções e limitações que se lhe posessem, ainda quando emanas- sem da sé apostólica. Recommendava o pon- tifice ao seu representante na corte de Lisboa que, se lhe fosse necessário auxilio do braço secular para remover quaesquer obstáculos á plena execução daquellas providencias, invo- casse o dicto auxilio, e exhortava D. João iii para que, obedecendo á sancta sé, desse todo o favor ao bispo de Sinigaglia no cumpri- mento da sua missão. Derogava, emfim, para este caso, todas as provisões de direito canó- nico e de quaesquer letras apostólicas oppos- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 17 tas ás actuaes, bem como os privilégios civis dos inquisidores em que elles podessem es- tribar-se para procederem de modo contrario ás resoluções pontifícias (1). Taes eram os pontos mais notáveis da bulia de 7 de abril. Particularisámos as disposições especiaes nella contidas, porque a sua maté- ria, como é fácil de prever, despertou serias resistências e deu origem a vivos debates. O pensamento geral dessa bulia é indubitavel- mente honroso para a memoria de Clemente vii, porque representa a protecção aos opprimidos e condiz com o espirito de tolerância evangé- lica, O desenvolvimento, porém, da idéa fun- damental daquelle acto do primaz da igreja nem sempre resiste á analyse. A cúria ro- mana punha-lhe o sello da sua individualidade. Constituia-se o núncio, e núncio tal como Si- nigaglia, árbitro supremo das questões sobre os desvios em matérias de fé, e os bispos fi- cavam equiparados, sob esse aspecto, aos de- mais poderes, funccionarios e magistrados (1) Bulia Sempiterno Regi, na G. 2, M. 2, N.» 11, e no CoUeclorio das BulJas do Sancto-Officio, f. 32. Omitlimos algumas circumstancias secundarias desta extensa bulia por não serem essenciaes para a in',elligencia da subsequente narrativa. TOMO II 2 18 HISTORIA DA INQUISIÇÃO ecclesiasticos ou civis. O caracter e os direi- tos inauferíveis do episcopado confundiam-se nesta parte com outras quaesquer funcções de delegação ou concessão pontifícia. Pelo que tocava aos christãos-novos, Marco delia Ru- vere podia considerar-se como o bispo uni- versal de todas as dioceses do reino e con- quistas, immediata e exclusivamente suffraga- neo da sancta sé. Na verdade, desde que havia a fazer distincções entre os réus ; desde que se tractava de confissões, de abjurações, de penitencias e ainda de condemnações em cer- tos casos, era necessário submetter isso tudo a alguma magistratura independente de um rei absoluto e fanático, de quem eram servos os bispos de Portugal. Mas tudo procedia de serem as provisões da bulia em grande parte illogicas em relação aos seus fundamentos. Desde que o papa altamente proclamava o principio de que um individuo constrangido a receber o baptismo não ficava por esse facto mais christão do que outro que nunca fosse baptisado, desprezando as ridiculas distincções de violências precisas e de violências condi- cionaes, inventadas pelos theologos e cano- nistas para darem plausibilidade ás mais ab- surdas tyrannias ; desde que dessa máxima indubitável resultava outra igualmente certa. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 19 a de que não era passível de nenhuma lei contra os herejes quem não adoptara espon- taneamente a fé christan, a consequência se- ria ordenar ao núncio que acceitasse aos mem- bros das famílias hebraicas a livre declaração da sua verdadeira crença, e prohibir severa- ramente ao rei, commínando-lhes graves pe nas, que tomasse a religião por pretexto para perseguir os seus súbditos, advertindo-o de que, se lhe convinha legar á historia mais lim nome de tyranno, o fizesse em nome das con veniencias dvis, e não calumniasse o christia- nismo. Aquelles que declarassem que a sua conversão fora espontânea e sincera, devia deixá-los entregues, não ás formulas singula- res e anti-canonicas da Inquisição, mas ao di- reito commum da igreja, á acção legitima do episcopado, cuja integridade cumpria restabe- lecer. Gomo primaz do orbe catholico, era o que incumbia ao papa, e a sua responsabili- dade acabava ahi. Se, porém, os bispos se mostrassem depois ou subservientes á cruel- dade do poder civil, ou remissos no desem- penho dos seus deveres, a elle, também como primaz, tocava revocá-los ao espirito do evan- gelho, ou supprir a negligencia dos prelados pelos meios que as leis da igreja lhe faculta- vam. O illogico da bulia ia até o absurdo. Ha- 20 HISTORIA DA INQUISIÇÃO via, por exemplo, nada mais monstruoso, sup- posta a doutrina que o papa invocava, do que deixar subsistir penas, embora menos rigoro- sas, contra os chamados relapsos, ainda mos- trando que haviam sido compellidos a receber o baptismo? Não declarava a própria bulia que semelhante procedimento seria intolerá- vel? D. Martinho de Portugal, que, depois da partida de Brás Neto, ficara único represen- tante da corte portuguesa em Roma, e que fora confirmado em fevereiro desse anno na dignidade de arcebispo do Funchal, metrópole das conquistas (1), não tendo podido obstar á resolução do pontifice, também não podia, sem denunciar certa connivencia, naquelle ne- gocio, deixar de escrever a elrei acerca de um successo de tanta monta. O que sabemos é que pouco tardou em chegar a Portugal aquelle importante diploma. Fosse, porém, (1) Bulia de 10 de fevereiro, no M. 13 de Bulias N.o 8, no Arcii, Nac. Nos Annaes de D. João ni por Sousa (Mennor. e Doe, p. 378) enconlra-se memoria de 15:000 cruzados remettidos em fevereiro de 1532 a D. Martinlio para certos gastos. Esta somma não parece ter sido destinada ao negocio da Inquisição, como se poderia suspeitar, mas sim ao da erecção do bispado do Funchal em metrópole das índias. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 21 que actuassem ainda as mesmas causas que até ahi parece terem gerado o inexplicável si- lencio da corte de Lisboa ; fosse que houvesse algumas desconfianças de D. Martinho, ape- sar da profunda impressão que semelhante facto devia produzir, o arcebispo embaixador não recebeu resposta ou instrucções algumas que servissem de norma ao seu procedimento ulterior (1). Elrei, a quem não era possivel oc- cultar o estado a que as cousas tinham che- gado, queixou-se amargamente ao núncio da resolução do pontífice e exigiu delle que fosse o orgam do seu vivo sentimento (2). Existe um memorial em nome de D. João iii, eviden- temente redigido nesta conjunctura (3), no (1) Carta de Santiquatro, 1. cit. (2) Ibid. (3) Esta memoria, que se acha na G. 2, M. 2, N.» 29, é, sem duvida, feita logo que a bulia de 7 de abnl ciiegou a Portugal; porque, depois de indicar rapi- damente os factos anteriores e alludir ao breve que suspendera a Inquisição, accrescenta: «os dictos christãos-novos ouverão agora outra bulia de per- dão, etc». Santiquatro diz expressamente que elrei «hauendo de cio notizia (da expedição da bulia de 7 de abril) fece scriuere per il nuntio a la santitá di N. S. pregando quella uolesse reuocare Tesecutione delia detta boUa». Carta de Santiquatro, 1. cit. 22 HISTORIA DA INQUISIÇÃO qual se apresentavam a Clemente vir muitas das ponderações que depois mais extensa- mente veremos allegadas contra a bulia de 7 de abril, cuja revogação ahi se pedia. O que não veremos é renovarem-se, ao menos tão amplamente, as concessões que durante a pri- meira impressão de desalento a intolerância julgava necessário fazer para salvar o resto das suas conquistas. Propunha-se naquella supplica ou memoria que, mantida a Inquisi- ção como fora concedida, se modificassem os terríveis resultados que tinham para as victi- mas as suas fataes sentenças; que os con- demnados como herejes não fossem entregues ao braço secular, evitando assim a morte, e sendo apenas desterrados para fora do rei- no; que se lhes não confiscassem os bens, e que estes ficassem para os seus herdeiros christãos, ou, quando não os tivessem, para obras pias; que os reconciliados, isto é, os confessos que obtivessem perdão dos inquisi- dores, não fossem penitenciados com cárcere perpetuo, nem também se lhes confiscassem os bens, mas que, tirando-se-lhes os filhos, para se não corromperem com o tracto e conveniência paterna, se reservassem esses bens para elles, ficando os réus privados dos direitos civis, e não podendo exercer outras HISTORIA DA INQUISIÇÃO 23 profissões senão as de trabalho manual ; que os filhos e netos dos sentenciados, uma vez que se mostrassem extranhos aos crimes dos progenitores, não padecessem nota de infâ- mia, e ficassem habilitados para usarem de todos os seus direitos e para obterem quaes- quer honras e dignidades (1). Chegou semelhante supplica ás mãos de Clemente vu "? Ignoramol-o. O que é certo é qne nas ulteriores negociações não se acha a menor refereneia ás propostas largamente favorareis aos christãos-novos que nella se continham. A estes, por vantajosíssimas que fossem essas condições, era, sem compara- ção, mais útil a prompta execução da bulia de 7 de abril. Por outra parte, fácil é de ima- ginar se o bi:-po de Sinigaglia se conformaria de boa vontade com as exigências d'elrei. Os proventos incalculáveis e a influencia que lhe resultavam da missão que se lhe conferira são evidentes. Marco delia Ruvere não era homem que de bom grado cedesse de taes vantagens, e as informações particulares com que havia de acompanhar a pretensão, se é que o memorial chegou a Roma, mal podiam (1) Memoria, 1. cit. 24 HISTORIA DA INQUISIÇÃO ser favoráveis a essa pretensão. Assim, o único resultado da demonstração d'elrei foi expedir-se nos fins de julho um breve ao bispo de Sinigaglia para que levasse a effeito as decretadas providencias, recommendando- se-lhe ao mesmo tempo que fizesse todos os esforços para o poder civil abrogar a lei que prohibia aos christãos-novos a saída do rei- no (1). Postas as cousas em taes termos, não era possivel aos ministros portugueses dissimu- lar por mais tempo. Expediram-se, emfim, or- dens e instrucções ao arcebispo do Funchal, nas quaes se lhe ordenava seguisse o papa até a cidade de Marselha, onde os negócios geraes da igreja e as circnmstancias politicas da Europa o obrigavam a residir por algum tempo. A pretensão d'elrei reduzia-se agora á suspensas da bulia e á revogação do breve relativo á sua prompta execução, até que che- gasse á cúria um embaixador extraordinário, que para lá se destinava, e que de accordo com o arcebispo, proporia as razões que o (1) Ibid. — O breve do mez de juliio dirigido ao núncio não o encontrámos; mas a sua existência e objecto mencionam-se no Memorial dos chrislãos- novos. Sym., vol 31, f. 31 e segg. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 25 governo português tinha a oppor contra as am- plas concessões feitas aos conversos (1). Di- rigiu-se, portanto, o arcebispo a Marselha, aonde chegara o papa a 12 de outubro (2). Um dos primeiros actos, porém, de Clemente VII, depois de se achar em França, fora reva- lidar a bulia de 7 de abril e escrever energi- camente a D. João III para que obedecesse ás provisões nellas contidas (3). Nascia este pro- cedimento das suggestões do núncio. Dando conta da sua missão, avisava o papa de que pedira a elrei facilitasse a execução dos man- dados apostólicos; mas que as suas diligen- cias haviam sido baldadas, bem como o tinham sido as supplicas dos christãos-novos, que. (1) Carta de Santiquatro, 1. cil. (2) Pallavicino, Istoria dei Concilio di Trento, L. 3, cap. 14. (3) No rápido esboço da historia das primeiras ne- gociações relativas á Inquisição, contido na carta de Santiquatro acima citada, não se allude a esta cir- cumstancia, nem no Arcliivo Nacional se encontra o breve dirigido a D. João III. Todavia no Memorial dos Christãos novos menciona-se o facto como cousa sabida na cúria romana, e na copia do Pro- cesso da Inquisição que consultou Fr. M. de S. Dâ- maso (Verd. Elucid. Argum. n.° 8) estava inserido o breve, que começa Ex litteris nuntii, e é datado de 19 de outubro. 26 HISTORIA DA INQUISIÇÃO para obterem o mesmo fim, não haviam pou- pado esforços. Segundo se dizia, D. João iii estava persuadido de que o pontífice accedera ás sollicitações de Duarte da Paz, sem as ne- cessárias informações, por peitas que rece- bera, e a elle próprio núncio dava mostras de lhe ser odiosa a sua estada em Portugal (1). Terminava o bispo de Sinigaglia recapitu- lando todos os escândalos que se tinham prao- ticado nesta matéria, e aconselhando o pro- cedimento que acerca da execução da bulia se devia ulteriormente seguir. Com a chegada do arcebispo do Funchal a Marselha, a ira, que no animo de Clemente vii deviam ter produzido as informações de Marco delia Ruvere, parece haver abrandado. Ou que o embaixador, compellido pelas instrucções que emfim recebera, procedesse com mais energia, ou porque se empregassem meios oc- cultos para tornar propicias algumas influen- cias poderosas na cúria, é certo que o papa conveio a final em ceder, quanto á prompta (1) «Rex. . . credeus, ut dicebalur, Clemenlern de hujus modi negoliis nom informatum, pocunia tau- tum motum, veniain prcedictam concessisse . . . nuntii paesentiani oslondebat abhorrere»: i. cit., f. 32. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 27 execução da bulia de 7 de abril, e em esperar dous mezes, até que chegasse o novo agente que se annunciava e que, de accordo com o arcebispo, devia apresentar e explanar as gra- ves objecções que elrei tinha a oppor contra o perdão. Em consequência disso, expedi- ra m-se a 18 de dezembro dous breves, um ao núncio, para que suspendesse a execução dos mandados apostólicos, e outro a elrei, avisan- do-o da resolução tomada (1). Estes factos passavam nos últimos mezes de 1533. Em dezembro desse mesmo anno ti- nha já o papa voltado a Roma (2). Transmit- tido á corte o êxito da negociação em Marse- lha, foi encarregado D. Henrique de Meneses da missão extraordinária juncto á cúria ro- mana. Cumpria, porém, preparar todas as ar- mas para combater o perdão de 7 de abril; colligir todos os factos e argumentos que po- dessem invalidá-lo. Não era negocio fácil. Cle- mente VII tinha de antemão mandado exami- nar as doutrinas da bulia e os seus funda- mentos na universidade de Bolonha, e dous (1) Carta de Santiquatro, 1. cit. - Breves Licet superioribus e Quod optavit cit. na Verd. Elucid. Ar- gum. N.o 9. (2) Palavicino, L. 3, cap. i (1 28 HISTORIA DA INQUISIÇÃO (los mais celebres professores daquella es- chola de jurisprudência, Parisio, depois ele- vado ao cardinalato, e Veroi, tinham redigido duas extensas dissertações nas quaes as pro- videncias do pontifice a favor dos christãos- novos eram plenamente justificadas (1), Gon- sultava-se entretanto em Portugal sobre as instrucções que se deviam dar de viva voz e por escripto ao novo agente que se enviava a Roma e ao que já lá se achava. Assentou-se em que a primeira cousa que cumpria extra- nhar no procedimento do papa era que, tendo sido concedida a Inquisição havia tão pouco tempo, agora, sem se darem novas circums- tancias, se annullasse esse acto anterior; que, attendendo-se para isso ás supplicasdos chris- tãos (embora na bulia se dissesse falsamente o contrario) nunca se quizcra dar ouvidos ao embaixador português. Julgou-se também ne- cessário recapitular com clareza as causas que houvera para a instituição do tribunal da fé, e ponderar-se que, á vista dessas causas, (1) As duas consultas, assas difíusas, acham-se, precedidas dos respectivos quesitos, na Symmicta, vol. 31, de f. 223 a 363. — Parece pelo seu contexto haverem sido redigidas na coujunctura da expedi- ção da bulia de 7 de abril, ou proximamente. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 29 devera ter sido o papa quem trabalhasse no estabelecimento da Inquisição, em vez de se lhe mostrar adverso; que, admittindo ter ha- vido no principio da conversão dos judeus al- guma violência, se devia advertir que esta não fora precisa, mas condicional, e que, portanto, para os conversos, os quaes, aliás, tinham fre- quentado depois por muitos annos os sacra- mentos da igreja, dando-se por christãos, era obrigativo o baptismo ; que O rei godo Sise- buto forçara os judeus a converterem-se, e, todavia, fora elogiado de religiosíssimo pelos padres do xii concilio toledano, e que igual louvor mereciam os príncipes que o imita- vam; que os judeus tinham tido tempo de saírem do reino, e muitos o haviam feito ; que os que ficaram com capa de christãos não eram provavelmente nem uma cousa nem ou- tra, escarnecendo por incrédulos dos sacra- mentos que recebiam; que a bulia estendia o perdão aos obstinados, cousa prohibida pelos cânones, e que perdoar no foro externo por confissões secretas, que podiam ser fingidas, era absurdo ; que semelhante perdão seria um escândalo para o orbe catholico ; que para os arrependidos serem perdoados bastavam as provisões canónicas e o tempo de graça que a Inquisição costumava conceder; que se, 30 HISTORIA DA INQUISIÇÃO apesar de todas estas considerações, o papa insistisse no perdão geral, este negocio deve- ria ser commettido ao inquisidor-mór e aos seus delegados, limitando-se o dicto perdão aos que, arrependidos, viessem especificada- mente confessar seus erros, substituindo-se para esses as penas de direito por penitencias arbitrarias, publicas ou occultas, e escreven- do-se as confissões, assignadas pelo confessor e pelo confitente, em registos, por onde de- pois se podessem saber os delictos que lhes haviam sido perdoados, ficando em todo o caso excluidos do perdão os relapsos. Sobre- tudo, devia insistir o embaixador em que de nenhum modo este negocio se commettesse ao núncio, mas sim a uma pessoa que o rei designasse, declarando-se que sem esta con- dição se não podia admittir nenhuma resolu- ção pontifícia relativa ao assumpto. Cumpria exigir a conservação do tribunal da fé como fora concedido e agora se propunha de novo, suspendendo-se quaesquer provisões passadas a favor dos judeus, e, finalments, insinuar se a Clemente vii ser voz publica em Portugal que todas essas providencias contrarias á In- quisição eram obtidas por avultadas peitas dadas na cúria romana, dando-lhe também a entender que novos actos no mesmo sentido HISTORIA DA INQUISIÇÃO 31 não fariam senão confirmar semelhantes accu- sações (1). Taes foram eai substancia as instrucções enviadas ao arcebispo do Funchal. Análogas deviam ser as que se deram a D. Henrique de Meneses acerca da bulia de 7 de abril, em- bora mais desenvolvidas (2). Gomo, porém, se queria salvar a todo o custo a Inquisição, e era necessária nova concessão por causa de Fr. Diogo da Silva ter recusado o cargo de inquisidor-mór, redigiram-se uns apontamen- tos especiaes sobre esse objecto. Nelles, pre- suppondo-se a revogação da bulia de 7 de (1) «he fama nestes reynos que por peita grossa de dinheiro que se deo em sua corte se negoceam estas provisões contra tão santa e tão necessária obra» : Minuta sem data na G. 2, M. 2, N.° 35, no Are. Nacion. Do seu contexto vê-se que este projecto de instrucções pertence á epoclia em que o coiloca- mos. Era, talvez, destinado a D. Martinho, porque diz na rubrica que é a «instrucção que S. A. deve mandar escrever ao embaixador». Se fosse para D. Henrique diria «.dar ao embaixador y>. (2) As instrucções ao novo agente sobre a revo- gação do perdão não nos foi possível descobri-las; mas alludem a ellas vários documentos posteriores, e as allegações offerecidas pelos dous ministros (Ra- gioni dei Re: Symm,, vol. 31, f. 366) das quaes va- mos falar, estão indicando o que dizemos no texto. 32 HISTORIA DA INQUISIÇÃO abril, o rei propunha modificações, não na idéa fundamental da instituição, mas sim no modo de regular os seus plKmeiros actos. Era uma verdadeira transacção que se offerecia. Imaginavam-se meios de satisfazer em parte aos fins que o papa tivera em mente nas am- plas concessões do perdão. A' matéria da bulia de 17 de dezembro de 1531 accrescen- tavam-se vários artigos. Estatuir-se-hia que qualquer individuo, de qualquer parte do reino e seus domínios, que no tempo de graça, que os inquisidores haviam de dar, viesse perante elles pedir perdão dos crimes que, em geral, houvesse commettido contra a fé, fosse absol- vido sem o obrigarem a especificá-los. Isto seria applicavel só aos que não estivessem accusa- dos judicialmente ou presos, embora corresse voz e fama contra elles, e ainda que a seu respeito houvesse inquéritos e provas de he- resia, não podendo em tempo algum fazer-se- Ihes cargo dos crimes perpetrados antes do perdão. Os assim reconciliados, cumpridas as leves penitencias secretas que se deixaria ao arbítrio dos inquisidores irapor-lhes, ficariam no goso de todos os seus direitos e plena- mente rehabilitados. Aos ausentes conceder- se-hia um anno de espera. Contra os culpados e presos, e contra aquelles que não viessem HISTORIA DA INQUISIÇÃO 33 110 tempo de graça implorar o perdão proce- der-se-hia segundo o costume e direito. Re- gistar-se-hiam os nomes dos reconciliados, assignando estes nos registos, e com elles os inquisidores da respectiva localidade e duas testemunhas obrigadas a guardar segredo ab- soluto sob pena de excommunhão. O inquisi- dor-mór e seus delegados, cujas largas attri- buições se particularisavam, ficariam, como em compensação, auctorisados para procede- rem, derogadas nesta parte as disposições do direito canónico, a todos os actos inquisito- riaes sem intervenção dos bispos, podendo avocar a si todas as causas de heresia, ainda que corressem perante juizes apos- tólicos, e até perante os núncios e legado à latere. Prevenindo-se o caso de não con- vir o papa no que se apontava de novo, em vez de se recuar insistir-se-hia pura e simplesmente na renovação da bulia de 17 de dezembro de 1531, mudado o nome do inquisidor-mór, o qual em logar do con- fessor d'elrei, o mínimo Fr. Diogo da Silva, seria o capellão-mór D. Fernando de Mene- ses Coutinho, bispo de Lamego. Ultimamente, a nova bulia devia conter a derogação ex- pressa e particularisada da de 7 de abril e de quaesquer outras letras apostólicas TOMO n 3 34 HISTORIA DA INQUISIÇÃO que podessem impedir a livre acção do tri- bunal da fé (1). Munido com estas instrucções, com cartas para Santiquatro e para o próprio Clemente VII, e, além disso, com o mais que se julgara necessário para o bom desempenho daquella missão, D. Henrique de Meneses chegou a Roma em fevereiro de 1534 (2). Apresentada ao papa a credencial do novo agente (3), os dous embaixadores tractaram o assumpto com o cardeal Pucci. Entendia o protector de Portugal, que o terem-se demorado tanto as diligencias que se faziam agora tornava o em- penho difficultosissimo ; porque, expedida a bulia de perdão. Clemente vii repugnaria for- temente a voltar atraz, sendo, em regra, mais fácil na cúria impedir qualquer negocio do que desfazê-lo depois de concluido (4). Entre- tanto, associando os seus esforços aos dos ministros portugueses, elle obteve do papa (1) Instrucção sem data, G. 2, M. 1, N.° 22, no Arch. Nac. (2) Carta de Santiquatro a elrei, na G. 2, M. 5, N.» 51. (3) A minuta da credencial acha-se no M. 2 de Cartas Missivas sem data N." 104, no Arch. Nac. (4) Carta de Santiquatro, 1. cit. HíSTORIA DA IMUUISÍÇÃO 36 uma longa audiência em que o assumpto foi miudamente debatido. Três dias durou a dis- cussão, que teve por único resultado mandar Clemente vii redigir a minuta de um breve, em que severamente se ordenava a D. João in cessasse de pôr obstáculos á plena e inteira execução da bulia de 7 de abril (1). A' vista de tal resolução, a causa da tolerância e da humanidade parecia haver triumphado, em- bora, como se acreditava em Portugal, essa victoria houvesse custado aos christãos-novos grandes sacrifícios pecuniários. Não desani- maram, todavia, nem Pucci nem D. Henrique de Meneses. A' força de considerações e sup- plicas, obtiveram uma nova revisão da maté- ria. Os cardeaes De Cesis e Campeggio, ho- mens de cuja sciencia o papa especialmente confiava, foram nomeiados para tractarem o assumpto com Santiquatro e com os repre- sentantes do governo português, intervindo nas conferencias, como consultores, eminentes theologos e canonistas (2). Uma longa expo- (1) ibid. (2) Preambulo do breve Venit ad nos de 2 de abril de 1534, no M. 19 de Bulias n." 12, no Arch. Nac — Memoriale, na Symm., vol. 31, f. 33 e segg. — Carta de Santiquatro, 1. cit. — Carta de D. Henri- 36 HISTORIA DA INQUISIÇÃO sição, redigida em conformidade das instruc- ções vocaes e escriptas que D. Henrique re- cebera, serviu de base aos debates. Esta exposição encerrava todas as considerações e argumentos que podiam salvar o edifício va- cillante da Inquisição, e annuUar as providen- cias benéficas com que o papa quizera reme- diar o erro de a haver concedido. Insistia-se ahi na fútil distincção da força precisa e da força condicional em relação ao baptismo dos judeus, pintando-se como doce violência as atrocidades de 1497, e appelando-se para o consentimento tácito dos convertidos por trinta e cinco annos, durante os quaes não haviam sido perseguidos, podendo ter-se con- firmado, em tão largo período, nas doutrinas do christianismo. Dizia-se que o governo os tractava, honrava e protegia como outros quaesquer indivíduos, e que nenhuns ódios alimentavam contra elles os christãos-velhos, aí¥irmativa cuja impudência seria incrível, se não existisse essa singular exposição. Asse- verava-se que na probidade das pessoas que se elegiam para exercerem os cargos da In- (|iiisição, estava a melhor garantia dos chris- que de Meneses de 10 de abril de 1534, G. 2, M. 5, N." 36, no Arch. Nac HISTORIA DA INQUISIÇÃO 37 tãos- novos, em cuja conservação no reino o estado altamente interessava, por exercerem, a bem dizer exclusivamente, a industria fabril e o commercio. Deste facto se pretendia de- duzir também argumento contra a accusação, que, segundo parece, nas anteriores discus- sões o papa fizera ao governo português, de que o zelo da fé não significava da parte deste senão o desejo de os espoliar, por via dos confiscos, das avultadas riquezas que pos- suíam ; porque, além de não se dever suppor tal da piedade e catholicismo d'elrei, sendo essas riquezas em jóias e dinheiro, e não em propriedades, elles punham tudo a salvo fór;i do reino, apenas se conheciam culpados (1), Entravam depois os embaixadores em largas considerações sobre os inconvenientes que resultavam do theor da bulia de 7 de abril e da forma do perdão nella estabelecida. A pri- meira ponderação era dirigida contra a parte menos defensável da bulia. Reflectia-se que, presuppondo-se os baptismos violentos, e con- cluindo-se d'ahi que os indivíduos violentados (1) A falsidade de todos estes embustes diplomá- ticos está provada pelo contexto dos alvarás de 20 e 21 de abril de 141)9 e da lei de 14 de junho de 1532, cuja matéria anteriormente exposémos. H8 HISTORIA DA INQUISIÇÃO não podiam ser tidos por christãos, nem estar portanto, sujeitos á penalidade contra os he- rejes, parecia absurdo faciiitar-se-lhes por ou- tro lado a confissão sacramental, para obte- rem ura perdão que, como judeus, não era applicavel, convertendo-se assim em buíra o acto da confissão ; que este absurdo trazia consequências mais absurdas, e tal era a de ficarem dahi avante esses judeus confessos, não só recebendo os sacramentos, mas até administrando-os, havendo muitos que tinham recebido ordens sacras. Se esta ponderação era grave, outras havia que estavam longe de ter a mesma força. Observava-se, por exemplo, que, não podendo ser perseguidos depois do jíerdão os não-processados que o viessem pedir, confessando em termos geraes que ti- nham delinquido contra a fé, seguir-se-hia que qualquer delicto religioso que houvessem an- teriormente perpetrado, e que só depois viesse a descubrir-se, ficaria impune, sem que, toda- via, delle tivessem especialmente podido per- dão. Muitas outras disposições da bulia eram combatidas com mais ou menos plausibili- dade por assegurarem a impunidade aos que, a troco de uma comedia de arrependimento, quizessem continuar occultamente no erro, conservando bens, cargos e dignidades civis HISTORIA DA IN5QUISIÇÃO 39 e ecclesiasticas, sem responsabilidade pelos actos da sua vida passada. Como se aos chris- tãos-novos fosse a cousa mais fácil do mundo sair do reino, contra punha-se á providencia pela qual se mandavam soltar os presos, para irem fazer as confissões perante o núncio, o inconveniente de que esses individues se po- riam a salvo fora do paiz, sem se aproveita- rem do concedido beneficio. Lembravam-se ao papa os resultados políticos que nas rela- ções entre Portugal e Castella podia ter o es- tender-se o perdão aos estrangeiros residentes no reino. Muitos dos chamados christãos- novos eram judeus hespanhoes, que, proces- sados e condemnados em Hespanha, haviam buscado asylo em Portugal, offendendo as provisões da bulia, não só a Inquisição da- quelle paiz, mas também os interesses da coroa castelhana pela exempção dos confis- cos, além do que, seria este o meio de fugi- rem muitos herejes daquellas províncias para Portugal, vista a facilidade de mostrarem com testemunhas falsas, longa residência neste paiz, sobre o qual recahiria a infâmia de ser um receptáculo de herejes. Esta. mesma cir- cumstancia, de se estenderem aos estrangei- ros todas as condições do pei^dão, o tornava duplicadamente perigoso na questão dos réus 40 HISTORIA DA INQUISIÇÃO julgados. A permissão de se fazerem julgar de novo perante o núncio trazia o odioso so- bre a Inquisição e sobre os prelados de Cas- tella, contra os quaes lhes seria fácil provar quanto quizessem, longe dos delatores e das testemunhas que o tinham feito condemnar. Depois destas considerações, a exposição di- latava-se pelos logares communs a que a in- tolerância costuma soccorrer-se contra o es- pirito da mansidão e indulgência evangélicas. Insistia-se nos effeitos fataes da falta de cas- tigo ; nos abusos que havia de trazer a cer- teza da impunidade ; nas fingidas declarações de arrependimento, e na impossibilidade de avaliar até que ponto as reconciliações eram sinceras. Dous objectos, além de tudo o mais, reputavam gravissimos os agentes de D. João III. Era um abranger o perdão os chris- tãos-velhos, especificando-se, até, para maior escândalo, as mais elevadas jerarchias eccle- siasticas, affronta profunda á nação portugue- sa, tão pundonorosa em matérias de religião, e que, portanto, não tinha de aproveitar per- dões de tal natureza. Outro era o commetter- se ao núncio, sendo estrangeiro, o encargo de regular e applicar as concessões da bulia, contra todos os usos estabelecidos, visto que só uma pessoa natural do reino estaria no HISTORIA DA INQUISIÇÃO 41 caso de appreciar as circumstancias que se davam acerca de cada um dos indivíduos que viesse sollicitar o perdão (1). O resto da exposição, partindo do presup- posto de se revogar a bulia de 7 de abril, não era mais do que a pharaphrase das instruc- ções que acima substanciámos sobre as mu- danças que elrei propunha se fizessem na nova bulia, pela qual, reconstituída a Inquisi- ção, devia ser nomeiado inquisidor-mór o bispo de Lamego. A única circumstancia que se omittia era a ordem secreta de pedir, dado que vigorasse a bulia de 7 de abri!, e quando outra cousa se não vencesse, a futura reproducção, pura e simples, da bulia de 17 de dezembro de 1531, com a única alteração do nome do inquisidor-mór (2). Taes foram, em summa, os pontos sobre que versou o novo debate perante os cardeaes De Cesis e Campeggio, a quem clemente vii com- mettera a definitiva decisão deste negocio. Pro- trahiu-se a contenda por muitos dias. De parte a parte, faziam-se esforços incríveis para obter a victoria. Se o que se dizia em Portugal era (1) Raggioni dei He: Symm. Lusit, vol. S-1, f. 366 e segg. (2) Ibid. 42 lliSTORIA DA INQUISIÇÃO verdade ; se o ouro dos hebreus aviventava na cúria romana o espirito da caridade evangélica, deve-se confessar que elles não o haviam pou- pado. As diligencias de Santiquatro e dos em- baixadores eram incessantes. D. João ni obtive- ra anteriormente do seu cunhado, Carlos v, car- tas para o papa, nas quaes o imperador recom- mendava vivamente o negocio (1). A grande maioria, porém, dos cardeaes e outras pes- soas influentes na cúria ou protegiam aberta- mente a causa dos christãos-novos ou incli- navam-se á indulgência. Ainda antes da en- viatura de D. Henrique de Meneses, o embai- xador hespanhol e o cardeal de Sancta-Cruz, acompanhando o arcebispo do Funchal ao Va- ticano, para entregarem as cartas do impe- rador acerca deste negocio, tinham falado ao pontifice de um modo inteiramente contrario ás recommendacões escriptas de Carlos v, lou- vando a resolução que o papa tomara de con- ceder o amplo perdão de 7 de abril (2). Eram instrucções secretas que para isso tinham, e (1) Vejam-se as cartas de D. Martinho de 14 de março e de 13 de septembro de 1535 (G. 2, M. I, N." 48 e M. 2, N.° 50, do Arch. Nac.) onde se allude a estes factos anteriores. (2) Carta de D. Martinho de 14 de março, 1. cil. HISTORIA DA INOflSíÇÃO 43 não passavam as rogativas da corte de Cas- lella de uma decepção, ou haviam sabido os christãos-novos chamar ao seu partido o re- presentante do imperador? Ignoramo-lo. En- tretanto, D, Henrique recebera em Lisboa or- dem positiva para conduzir o negocio de ac- cordo com o agente de Castella (1), poderoso apoio, na verdade, attenta a influencia de Car- los V em Roma, se a protecção fosse sincera. Nem as razões que os ministros de Portu- gal apresentavam contra a politica de tole- rância adoptada pelo pontífice, nem os seus esforços indirectos, nem o apoio moral de Carlos V, se existia, tiveram, todavia, força bastante para alterar essa politica. Em resul- tado dos debates, os theologos que haviam assistido como consultores ás conferencias dos ministros portugueses com os cardeaes Santiquatro, De Cesis e Campeggio, redigiram uma larga defesa da bulia de 7 de abril em que se analysavam e refutavam os argumen- tos oppostos. Além desta, apresentou-se em nome do papa outra dissertação não menos extensa, e cujo intuito era o mesmo. Porven- tura, a sua redacção pertencia aos dois car- (1) Carta de D. Martinho He 14 de março, 1. cit. 44 HlSroRIA DA 1N'0UI81í:ÃO deães commissarios e resumia as pondera- ções a que haviam recorrido iia discussão oral (1). Posto que, como já advertimos, a bulia, pelo illogico das suas deducções pre- ceptivas, em relação aos seus fundamentos theoricos, e pelo desprezo das verdadeiras doutrinas da igreja acerca da auctoridade episcopaN que as attribuições conferidas ao núncio nesta parte annullavam, fosse, absolu- tamente falando, fácil de combater não o era, relativamente, para homens fjue lhe oppunham pretensões muito mais absurdas, e essencial- mente contrarias, não só á disciplina da igreja, mas também á Índole do christianismo e ás (radições evangélicas. Na essência, a razão estava do lado do papa, e embora, numa ou noutra particularidade, ás ponderações feitas em nome d'elrei não se podessem oppor de- cisivos argumentos, é certo que o todo das respostas dadas pelos cardeaes e pelos con- sultores produz a convicção. Rememorando as palavras e obras de Christo, dos apóstolos e dos padres primitivos ; a doçura com que (1) ICslas (luns allogações constituem os N.»* IG e 17 dos documenlos junclos ao memorial dos Ch.ris- tãos-novos de 15ii, na Symm. Lusit., voJ. 31, f. 395 e seíí-K. HíSTOIUA DA INOUISIÇAO 40 se devia inculcar o christianismo, o respeito que cumpria ter-se á liberdade do alvedrio humano na adopção de uma crença nova, e a mdulgencia de que antigamente se usava para com as fragilidades e desvios dos neophytos, que vinham, aliás, espontaneamente e sem nenhuma coacção alistar-se então debaixo das bandeiras da cruz, os defensores da bulia de 7 de abril punham em contraste com esse admirável quadro de tolerância e de modera- ção nos primeiros séculos da igreja as sce- nas de bruta tyrannia com que se procedera em Portugal á conversão dos judeus. Ao quadro do abandono em que os prelados e clero de Portugal tinham deixado homens trazidos sem vocação ao grémio da igreja, elles contrapunham o zelo modesto, mas in- cessante, a paciência e brandura com que na origem do christianismo os apóstolos e os seus immediatos successores iam guiando os débeis passos dos convertidos, e alimentando com a instrucção religiosa os ânimos vacil- lantes dos que, abrindo os olhos á luz da eterna verdade, ainda não tinham a robustez precisa para supportar todo o seu explendor, sacrificando até, ás vezes, a disciplina christã a hábitos arreigados que não era possível extirpar de repente, quando esses hábitos não Aiy HISTORIA DA INQUISIÇÃO íeriam a pureza do christianismo. Este con- traste, estribado de um lado no Novo Testa- mento e nos monumentos primordiaes da igreja, e do outro nos factos que se haviam passado em Portugal nos últimos quarenta annos, era fulminante. «Se, porém — diziam — as tradições e a practica da mansidão e in- dulgência da igreja para com aquelles que de livre vontade entravam no seu grémio eram taes, quanto maior devia ser a brandura e a caridade para com homens violentados ao baptismo e abandonados nas trevas dos seus erros» ? Os theologos de Clemente vii vinham depois á concessão da bulia de 17 de dezem- bro de 1531 e á inconsistência que se notava entre esse facto e a bulia de perdão. Nesta parte a resposta não era menos fulminante. «Sua sanctidade — diziam elles — entende que é melhor referir ingenuamente a verdade, do que recorrer a subtilezas. Levaram-no a con- ceder a Inquisição por meio de informações sinistras, persuadindo-lhe cousas que prefere calar, para não fazer os que a soUicitaram odiosos a seus próprios naturaes, infaman- do-os perante o orbe christão com o ferrete da deslealdade. Seria essa a consequência de se patenteiarem as mentiras que forjaram para perder esta misera gente. Só depois, sua HISTORIA DA INOUISIÇÃ.O 4/ sanctidade soube que os factos eram pela maior parte mui alheios do que se pintava, e isto por mformações de diversos individuos, dadas por escrito e vocalmente. As barbari- dades que se practicam são taes que custa a perceber como haja forças humanas que pos- sam sofíVer tanta crueldade». — Passavam de- pois a fazer o extracto de uma dessas infor- mações dignas do maior credito. — «Se é de- latado, ás vezes por testemunhas falsas, qualquer desses malaventurados, por cuja redempção Christo morreu, os inquisidores arrastam-no a um calabouço, onde lhe não é licito ver céu nem terra e, nem sequer, falar com os seus para que o soccorram. Accu- sam-no testemunhas occultas, e não lhe reve- lam nem o logar nem o tempo em que pra- cticou isso de que o accusam. O que pôde é adivinhar e, se atina com o nome de alguma testemunha, tem a vantagem de não servir contra elle o depoimento dessa testemunha. Assim, mais útil seria ao desventurado ser feiticeiro do que christão. Escolhem-lhe depois um advogado, que, frequentemente, em vez de o defender, ajuda a levá-lo ao patíbulo. Se confessa ser christão verdadeiro e nega com constância os cargos que delle dão, condem- nam-no ás chammas e os seus bens são con- 48 HISTORIA DA INQUISIÇÃO fiscados. Se confessa taes ou taes actos, mas dizendo que os practicou sem má tenção, tractam-no do mesmo modo, sob pretexto de que nega as intenções. Se acerta a confessar ingenuamente aquillo de que é culpado, re- duzem-no á ultima indigência e encerram-no em cárcere perpetuo. Chamam a isto usar com o réu de misericórdia. O que chega a provar irrecusavelmente a sua innocencia é, em todo o caso, mulctado em certa somma, para que se não diga que o tiveram retido sem motivo. Já se não fala em que os presos são constrangidos com todo o género de tor- mentos a confessar quaesquer delictos que se lhes attribuam. Morrem muitos nos cárceres, e ainda os que saem soltos ficam deshonra- dos, elles e os seus, com o ferrete de perpe- tua infâmia. Em summa, os abusos dos in- quisidores sãos taes, que facilmente poderá entender quem quer que tenha a menor idéa da Índole do christianismo, que elles são mi- nistros de Satanaz e não de Christo». — Tal era o extracto. Accrescentavam os theologos que, certificado por testemunhos indubitáveis destes factos, convencido de que o dever de pontifice era edificar e não destruir, e vendo que os inquisidores tractavam os conversos, não como pastores, mas como ladrões e mer- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 49 cenários, não só suspendera a Inquisição, mas também, conhecendo que contribuirá, por falta de são conseliio, para taes horrores, quizera dar uma reparação ás victimas, con- cedendo aquelle amplo perdão ; que não lhe importava se os seus predecessores tinham, acaso levianamente, concedido ou tolerado taes cousas nos outros reinos de Hespanha: importavam-lhe os exemplos dos apóstolos, que o espirito divino alumiava ; porque elle não suppunha ser vigário de Innocencio viii, de Alexandre vi ou de outro qualquer papa, mas sim daquelle de quem, conforme o sen- tir da igreja, era próprio compadecer-se e perdoar. Notava-se, emfim, que elreiextranhas- se tanto esta indulgência e tolerância do pon- titice, quando seu pae havia concedido aos christãos-novos privilégios e exempções que elle próprio confirmara, ao passo que o pon- tífice, absolvendo-os agora, não fazia, propria- mente, senão dilatar por um praso demasiado curto os eífeitos das concessões havidas por elles da benevolência real (1). (1) Nas respostas dos theologos e cardeaes, nas allegaçòes dos christãos-novos, em todos os docu- mentos nos quaes se allude aos privilégios conce- didos por D. Manuel aos seus súbditos hebreus e TOMO II 4 50 HISTORIA DA INQUISIÇÃO Todas as considerações offerecidas por parte d'elrei eram contradictas com jgual energia, se não sempre com a mesma felici- dade de doutrina e raciocinios, nos dous me- morandos da cúria romana. Vendo o negocio perdido na commissão escolhida para o tra- ctar, os agentes de Portugal redobravam de conlirmados por D João lu, suppõe-se constanle- menle que o praso em que por aquelles privilegies ficavam immunes da perseguição era de vinte e nove annos. Entretanto, sendo a primeira concessão, feita em 1497, de vinte, e a prorogação feita em 1512, de mais dezeseis (veja-se o voJ. i, p. 188), era rigoro- samente de trinta e seis esse praso, porque é obvio que se devia contar depois de expirado o periodo da primeira concessão. D. João m parece, porém, ter con- siderado essa prorogação como devendo contar-seda data em que foi expedida, isto é de 1512, sendo aliás clara a intelligencia contraria a quem ler o respec- tivo diploma, inserido em confirmação de 1522, no L. I da Chancellaria de D. João ni, f. 44 v. Acceita- ram os christãos-novos aquella interpretação for- çada, on alteraram-se os transumptos que se lhes deram quando se confirmou a concessão em 1522? No systema de deslealdade que então predominava, não sabemos o que pensar a tal respeito. Notaremos a circumstancia singular de não acharmos na Chan- cellaria de D, Manuel um diploma tal como a pro- rogação do 1512, encontrando-o na do seu succes- sor. E' um facto para nós inexplicável. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 51 instancias para com Clemente vii, a fim de obterem uma resolução menos desfavorável. O resultado, porém, dos seus esforços não chegou a mais do que a propor- lhes elle uma transacção, que aliás, á vista das suas instru- cções, não podiam acceitar. Era voltar tudo ao antigo estado, revogando-se a bulia de 7 de abril, supprimindo-se inteiramente a Inquisi- ção, e começando-se de novo a tractar de raiz o assumpto. Debaixo destas condições, o papa não duvidava de vir a conceder uma Inquisição ainda mais rigorosa (2). Não restava, pois, meio algum de esquivai por então o golpe. O mais que se pôde alcan çar foi que, em vez do breve, cuja minuta es- tava redigida, para compellir elrei a aquies cer á bulia de perdão, se escrevesse outro mais moderado na forma, mas, porventura. no essencial ainda mais enérgico. Nesse breve, expedido a 2 de abril, o papa indicava sum- mariamente o processo da negociação e de- clarava a D. João III que, embora não fosse obrigado a dar-lhe satisfiação da maneira poi (2) InstrucçÓGS sem data, ma« que «íVidenlemenU são de 1535, na G. 13, M. 8, N." 2, e Carta de D Henrique de Meneses de 10 de abwl d« 1534, G 2. M. 5, N.o 36, 110 Arch. Nac 52 HISTORIA DA INQUISIÇÃO que procedia como supremo pastor, comtudo. por deferência com elle, dar-lhe-hia razão de si, apontando-lhe os motivos que tivera para rejeitar as supplicas dos seus embaixadores. Estes motivos eram em substancia os mes- mos dos memorandos dos cardeaes e tlieolo- gos, expostos com admirável lucidez, simpli- cidade e elegância, sem perderem um ápice da sua força. Concluia o pontífice asseve- rando que estava certo da obediência d'elrei e assegurando a este que, se tivesse de fazer novas ponderações, a corte de Roma estava prompta a ouvi-las uma e mil vezes (1). Pou- cos dias depois, Clemente vii escrevia ao núncio, avisando-o da expedição deste breve. Esperava o papa que, respondendo-se ahi a todas as objecções, elrei não poria mais obs- táculos á execução da bulia. Ordenava-lhe, portanto, que cumprisse o que nela se esta- tuía, repetindo-lhe, comtudo, a advertência que já por muitas vezes lhe fizera, advertên- cia que, aliás, não provava demasiada con- fiança nas qualidades moraes do bispo de Sinigaglia, de que nem elle, sob pena de sus- pensão, nem os seus ministros e familiares, (1) Breve Venít ad nos de 2 de abril de 1534, no M. 19 de Bulias N.o 12, no Arch. Nac. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 53 sob pena de excommunhão, se aproveitassem das circumstancias para fazerem extorsões aos christãos-novos, fosse com que pretexto fosse, sem exceptuar o de suppostas dadivas voluntárias, ou o de despesas pela feitura de quaesquer diplomas (1). Na mesma conjunctura escreviam os agen- tes d'elrei para Portugal dando conta do in- feliz resultado da negociação. O arcebispo do Funchal sustentava que o mal procedera prin- cipalmente de se ter pedido o favor de Cas- tella, divulgando-se assim o negocio, e acon- selhava elrei sobre o procedimento que devia adoptar. Desgostoso, porque sabia que a mis- são de D. Henrique de Meneses nascera de se desconfiar delle, nem por isso se tinha mos- trado mais frouxo (2). O cardeal Santiquatro e o embaixador extraordinário, D. Henrique, (1) Breve Ex iitterarum de 9 de abril de 1534, ori- ginal no M. 20 de Bulias N." 4, e uma versão portu- guesa na G. 2, M. 2, N.» 5, no Arch. Nac. (2) A existência desta carta do arcebispo a elrei (bem como de outras anteriores e posteriores que não podemos encontrar), e o pouco que acerca do seu conteúdo dizemos no texto deduzem-se das duas cartas do mesmo D. Martmho, de março e septem- bro de 1535, que se acham na G. 2, M. 1, N.° 48, e M. 2, N." 50. 54 HISTORIA DA INQUISIÇÃO esereTerom lambem. A carto deste ultimo, que ainda existe, e que foi enviada pelo mesmo mensageiro que trouxe o breve, é um docu- mento importante, porque nos mostra como, apesar desse breve, ainda não estava tudo ir- remediavelmente perdido. Havia pontos em que o papa parecia inabalável, e a opinião ge- ral na cúria ia conforme com elle : no resto era fácil vir a um accordo. D. Henrique lem- brava a exequibilidade da transacção que Cle- mente vil propunha de se revogarem absolu- tamente os dous actos de 17 de dezembro de 1531, que creara a Inquisição, e o de 7 de abril, que virtualmente a annullava, tractando- se de novo o assumpto, ou sobreestando por emquanlo na resolução dessa matéria. A'cerca disto remettia a elrei um projecto de breve que o pontifice lhe ordenava communicasse ao seu soberano. Gomo é de crer, o embaixador acha- va que elrei teria razão de se offender do pro- cedimento do papa ; mas advertia que medi- tassem bem os seus conselheiros na resolu- ção que deviam e podiam adoptar, de modo que depois se não vacillasse, e, posto que pou- co explicitamente, suggeria como possivel a idéa de se quebrarem as relações com a corte pontifícia, mandando-os retirar de Roma, a ei- le e ao arcebispo. Quanto ao negocio em si, HISTORIA DA IMQUISIÇÃO 55 havia a escolher entre duas soluções, ambas as quaes o papa acceitaria. Consistia a pri- meira no que já se apontara, de voltar tudo ao estado anterior á concessão do tribunal da fé : consistia a segunda em substituir-se a bulia de 7 de abril por outra, onde se fariam as modificações que o papa acceitava, figuran- do-se que era soUicitada pelo próprio rei, e que seria minutada por Santiquarto. Adoptado este expediente, obter-se-hia com vantagem o posterior restabelecimento da Inquisição, ain- da quando fosse preciso derogar para isso al- guma provisão de direito canónico. D. Henri- que parecia inclinar-se para a primeira solução. Voltando tudo ao estado antigo, sairia de Por- tugal o núncio, cuja persistência neste paiz era o mais duro obstáculo á boa conclusão do ne- gocio. Ganhar-se-hia assim tempo, mudariam os homens e as cousas, e elrei teria tempo de tornar favorável o animo do papa. Seguindo o outro arbítrio, o embaixador offerecia a D. João III um conselho suggerido por Santiqua- tro. Era que não ficassem de graça aos he- breus as suppostas sollicitações do monar- cha ; e que, por modo de penitencia, se lhes extorquissem vinte ou trinta mil cruzados ou, emfim, outra qualquer somma, que seria re- partida com Clemente vii, descontente d elrei 56 HISTORIA DA INQUISIÇÃO por não lhe ter acudido em diversas circums- Lancias apuradas (1). Assegurava ser geral na cúria a opinião de que, sobretudo, interessava á honra d'eh'ei e á memoria de seu pae con- ceder-se o perdão, e lembrava que em Roma não se queria senão dinheiro (2). Remettia de novo copia dos memorandos a favor da bulia de 7 de abril, aos quaes, dizia, talvez ironica- mente, fácil era responder, posto que elle para isso não estivesse habilitado. O resto da carta referia-se ao acabamento da sua missão, á bre- vidade com que pedia novas instrucções, e a certas mercês que o cardeal Sancta-Cruz sol- licitava d'elrei. Por fim, recommendavaj que no caso de se adoptar a segunda solução que propunha, se obtivesse de Carlos v que fizesse novas instancias ao papa sobre o assumpto. Uma carta de Santiquatro para elrei acom- panhava a do embaixador extraordinário, (1) «O que diz SaiiUquatro he que o nom levem estes Judeos tão saboroso, e que lhes dem penitencia de vinte ou trinta mil crusados, ou os que V. A. ou- ver por bem, e que partaes co papa para suas ne- cessidades, com quem, diz, que V. A. nom tem com- prido em muitas cousas em que as o papa teve» : Carta de D. H. de Meneses de 10 de abril de 1534, G. 2, M. 2, N.o 36- (2) (íQua norr querem senão dinheiros, ibid. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 57 tendo por objecto reforçar as considerações que nella se faziam (1). Vê-se que havia um ponto em que discor- davam os dous ministros portugueses. Era o da intervenção do gabinete de Castella neste negocio. Emquanto o arcebispo indicava como fatal essa intervenção e attribuia a ella prin- cipalmente os maus resultados da empreza, D. Henrique de Meneses aconselhava novas e apertadas instancias, para obter o favor de Carlos V, no caso de se quererem continuai as negociações. E' obvio que a protecção de- cisiva do imperador era assas forte para coa- gir Clemente vii, que, por motivos extranhos ao nosso assumpto, a nenhum príncipe da Europa devia temer tanto como ao poderoso monarcha da Hespanha : a manifestação clara e precisa dos seus desejos nesta matéria equi- valeria sem duvida a uma ordem formal. Embora o arcebispo allegasse o dúplice pro- cedimento anterior do ministro hespanhol em Roma, ainda suppondo que tal procedimento fosse resultado de insinuações secretas, a consequência não era, como elie entendia, inutilisar essa arma irresistível ; era fazer di- fl) Ibid. 58 HISTORIA DA INQUISIÇÃO ligencias para a tornar de fina tempera, bus- cando por todos os modos que a protecção de Castella fosse efficaz e sincera. Porque, [)OÍs, pretendia affastá-la o arcebispo, homem astuto, e que a si próprio se gabava de que só algum negocio impossivel seria o que elle não soubesse levar a cabo (1 ) ? É licito sup- por que desejava prolongar a lucta, porque interessava em residir na corte de Roma, e |)orque, apesar das exaggerações que lemos na correspondência que delle nos resta acer- ca dos próprios serviços, o arcebispo trahia o seu dever, acaso porque dessa deslealdade tirava os meios para realisar os desígnios que nutria. Documentos posteriores revelam- nos a este respeito uma vergonhosa historia, um desses quadros que não raro passarão ante os olhos do leitor, e que provam o erro dos que suppõem que o século xvi, inferior sob tantos aspectos ao nosso, valia mais do que elle pelo lado moral. D. Martinho era um grande ambicioso. Não (1) «Se este negocio se pudera fazer como V. A. queria, eu o acabara em lempo de Clemente, ou deste papa, ou de qualquer que íora; mas pois eu não pude, não foi acabavel»: C. de D. Martinho de 13 de setembro de 153.5, G. 2, M. 1, N.» 50. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 59 contente com achar-se elevado á dignidade de embaixador e de arcebispo primaz do Oriente, punha a mira na purpura cardinalicia, con- tando com o favor de Clemente vii (1). Para isto carecia de não alienar o animo do pon- tifice, íirme no seu propósito de favorecer os christãos-novos ; precisava, além disso, de conciliar a benevolência dos individues mais influentes na cúria, que, como temos visto, os protegiam energicamente. Depois, se era ver- dade, como dizia D. Henrique de Meneses, que em Roma o que se queria era dinheiro, um homem a quem os escrúpulos não in- commodavam devia, para chegar aos seus fins, aproveitar todos os meios de o obter. Sabemos pela boca dos conselheiros de D. João III que em Portugal se acreditava geral- mente que a benevolência da cúria para com os christãos-novos não era gratuita, e o pró- prio papa não estava exempto de taes suspei- tas. Nessa hypothese, comprar um simples (1) Esta narrativa é deduzida de án&s cartas de D. Henrique de Meneses, de outubro e novembro de 1535, e de outras de Santiquatro, de 10 e 16 de no- vembro desse anno e de 28 de maio de 1536, que se acham na G. 20, M. 7, N.o^ 1, 23, 24 e 2G, no Arcli Noc. ()0 HISTORIA DA INQUISIÇÃO arcebispo não seria cousa que excedesse os recursos dos conversos. Fosse como fosse, é certo que, ao chegar D. Henrique a Roma, existiam já relações occultas entre D. Marti- nho e Duarte da Paz, os quaes todos os dias tinham conferencias secretas (i). Tractava naquelle tempo o arcebispo de remover uma grande diffículdade que se oppunha ás suas miras. Era a da bastardia, por ser filho do bispo de Évora e de uma certa Briolanja de Freitas (2), o que o excluia do cardinalato. Clemente vii não o ignorava, mas mdiíferente a essa circumstancia (3), conveio em repre- sentar um papel na farça que, para obter os (1) «e por aue isto lie perdido, e o foi muito ha. . . lie que des que aqui sou atégora, ontem, e ante- ontem, e oje, e cada dia o arcebispo tem oras e por- tas por onde lalla canto quer com Duarte da Paz»: C. de D. Henrique de 1 de novembro de 1535 : G. 20, M. 7. N.o 23. É a isto que se refere o breve Exponi nobis de 12 de junho de 1536 (M. 14 de Bulias N.° 7 6 M. 24, N.o 35), em que se annulla o processo da legitimação do arcebispo, ibi: «minus quam conve- niret ad regia negotia, et nimis ad sua intentas, minus probè et etiam quam par esset, etc». (2) Breve Exponi nobis, 1. cit. (3) «Quasi che avosse piacere (Clemente vii) che uno bastardo venisse ai grado dei cardinalato» : C. de Santiquatro, G. 20, M. 7, N.» 2b. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 61 seus fins, o enviado português imagina- ra. Uns certos Correias, que se achavam em Roma, fingiram, de accordo com este, deman- dá-lo em razão de alguns bens, verdadeiros ou suppostos, em que diziam não dever D. Martinho succeder por ser bastardo. O em- baixador negou a excepção, e o papa no- meiou juizes para dirimirem a contenda. O arcebispo accumulou então toda a casta de documentos falsos, e fez instituir quantos in- quéritos quiz de testemunhas compradas, com que provou judicialmente que era legi- timo. Os registos da cúria estavam cheios de supplicas em que por diversas vezes e em diíferentes epochas D. Martinho reconhecera a sua bastardia e delia pedira dispensa ; mas como o processo não passava de uma co- media, nem a parte adversa impugnou as provas, nem os juizes fizeram caso do facto sabido, e a legitimidade do arcebispo foi jul- gada por sentença (1). Assim preparado, só restava esperar pela conjunctura de alguma creação de cardeaes, e ter a seu favor os (1) «ritrovato le falsitá dei testimonii et dei no- tarii et le collusioni delle parti»: Ibid. Veja- se o breve Exponi nobis, onde a farça vem ongamente descripta. 62 HISTORIA DA iNunisiçÃo conselheiros do papa, no que Duarte da Paz, que soubera captar-lhes a benevolência, lhes poderia ser grandemente útil. Em todas estas cousas procedia o astuto prelado com se- gredo e disfarce, de modo que D. Henrique de Meneses só mais tarde veio a descubrir o alvo a que o arcebispo mirava. Assim, ven- dido no meio daquelles torpes enredos, e en- ganado com as apparencias de zelo do seu collega, contribuia involuntariamente para il- ludir elrei, exaggerando os serviços de D. Martinho e a sua incansável acti\ddade (1). Se o embaixador ordinário em Roma trahia a confiança do seu soberano, provavelmente para se ajudar em proveito das suas ambi- ções particulares do agente dos christãos-no- vos, este não desmentia por sua parte o ca- racter com que já o leitor o vio apparecer no fim do precedente livro. Se as suas offertas para vender os hebreus portugueses, que nos actos externos servia com tanto zelo, tinham (1) C. de D. Henrique, já citada, de 10 de abril de 1534. Como veremos odianle, o despeito do embai- xador extraordinário subiu ao ultimo ponto quando no anno seguinte descubriu a trama do arcebispo, a quem chama eate tredor : C. de D. H. de Meneses de 1 de novembro de 1535, G. 20, M. 7, N.o 23. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 63 sido formalmente acceitas, ou se apenas a esse infame trafico se dera um assenso tá- cito, não saberíamos dizê-lo. É certo, porém, que, ao mesmo passo que parecia obter para os seus tão assignalado triumpho na cúria romana, elle denunciava para o reino, por in- tervenção do arcebispo, os mais notáveis en- tre os pseudo-christãos que tractavam de se pôr a salvo fugindo de Portugal, e indicava quaes seria conveniente prender e processar, suggerindo as providencias que reputava convenientes para obstar á sua fuga e offere- cendo-se para a isso pôr obstáculos em Itii- lia (1). Se outr'ora Duarte da Paz, mandando a elrei a cifra por meio da qual deviam cor- responder-se, exigia o maior segredo, recom- mendando que nem o próprio embaixador Brás Neto soubesse das suas relações com o (1) «e para verdes a vertude que ha neile (em Duarte da Paz) vos envio com esta carta as pró- prias cartas que elle la deu ao arcebispo do Fun- chal para me enviar, porque me descobria alguns de sua gente, e dos principaes, que de cá se queriam fugir, para serem presos e se proceder contra elles, e o que nisso se offerecia fazer e as provisões mi- nhas que para isso me requeria, etc». Carta de D. João III a Santiquatro de. . . de. . . de 1536, G. 2, M. 1, N.° 28. 64 HISTORIA DA INQUISIÇÃO soberano, como escrevia agora por interven- ção de D. Martinho? Forçoso é suppormos que entre estes dous homens havia laços mysteriosos, que o prelado não podia que- brar sem se perder a si próprio. Fora disto, a confiança do astuto hebreu seria inexplicá- vel. O que é certo é que ambos os dous ga- nhavam na prorogação da lucta. Por um lado o arcebispo, que tinha a chave do negocio da Inquisição, mal poderia ser substituído, e a prova era que D. João iii, em vez de o remo- ver se limitara a collocar ao pé delle um ho- mem ou mais activo ou de maior confiança. Por outro lado Duarte da Paz, por cujas mãos corriam os recursos de que os chris- tãos-novos dispunham para escaparem ao extermínio, quantas mais difficuldades susci- tasse á definitiva realisação das vantagens que elle próprio obtinha, mais proventos po- dia auferir das tenebrosas negociações que lhe eram confiadas. Esta hypothese, que se estriba em grandes probabilidades, dado o caracter dos dous agentes, explica de modo assas plausível esses factos de repugnante immoralidade. Que era o que se passava em Portugal en tretanto? A bulia de 7 de abril continha as disposições mais explicitas, as comminações HISTORIA DA INQUISIÇÃO 65 mais severas, e precavia, quanto a previdência humana o podia alcançar, todas as resistên- cias. Numa corte, que se dizia tão profunda- mente possuida das crenças catholicas, como a portuguesa, a linguagem do supremo pastor, as ameaças terríveis com que sanccionava as suas providencias deviam fazer curvar todas as cabeças. Suppondo que as disposições da- quella bulia não se estribassem, como estri- bavam, nas doutrinas irrefragaveis do chris- tianismo, e que fosse controversa a convem- encia do concedido perdão, é claro que o papa, de quem o próprio D. João iii reconhecera de- pender o estabelecimento da- Inquisição, sol- iicitando-o delle, podia annuUá-la do mes- mo modo que a instituirá. As censuras, por- tanto, fulminadas no diploma de 7 de abril cahiriam justissimamente sobre a cabeça da- quelles que desobedecessem. Não importava a existência do breve de 2 de abril de 1534 Embora Clemente vii deixasse ahi a porta aberta ás tergiversações, promettendo ou- vir todas as queixas que elrei quizesse fazer contra o perdão ou contra as condi- ções delle; isso não obstava ao cumpri- mento, porque a bulia invalidara de ante- mão quasquer actos pontifícios posteriores que podessem servir de obstáculo á suo TOMO ir 5 66 HISTORIA DA INQUISIÇÃO execução (1). Estas obvias considerações^ capazes de conter os espirites timoratos ou sinceramente crentes, não fizeram, todavia, a minima impressão em Portugal, e esse diplo- ma, cujas provisões pareciam irresistiveis, foi, nos resultados, nuUo ou insignificante. Tanto é certo que o fanatismo nos seus furores não sabe recuar diante de negação das doutrinas que propugna, e que a hypocrisia faz joguete até da própria mascara, quando lhe não resta outro meio de ludibriar o céu e a terra. Emquanto os hebreus portugueses busca- vam abrigo contra as perseguições no seio de Clemente vii, e parecia aos olhos do mun- do que emfim lhes raiara o dia da redempção, elles gemiam, sem descanço nem tréguas, no meio dos martyrios que os seus amigos lhes (1) «ac easdem praesentes litteras de subreptionis vel obreptionis vitio seu intentionis nostrae deffectu notari vel impugnar! non posse, nec sub quibusvis revocationibus, modificationibus, limitationibus et suspensionibus quarumcumque similiumlitterarum, etiam per nos et sedem eandem factis et faciendis, nullatenús comprehensas, sed ab illis semper ex- ceptas esse, et quotiés revocatae vel limitatae fuerint, totiés in eum, in quo ad praesens existunt, statum restituías et reintegratas existere» : Bulia SempiteT' no Regi, 7 de abril de 1533, 1. çit. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 67 haviam preparado. Já vimos quaes eram as informações obtidas em Roma sobre o sys- tema de perseguição adoptado pelos inquisi- dores portugueses, systema que na essência vinha a ser o seguido em Castella. Aos hor- rores practicados dentro dos muros do lúgu- bre tribunal e que já naquelles princípios, conforme se deprehende dos factos mencio- nados nos memorandos da cúria romana, eram semelhantes aos de que nos restam tantos vestígios em tempos posteriores, ajun- ctava-se a perseguição civil, que, dando im- pulso aos processos contra os herejes, con- vertia os tribunaes ecclesiasticos ordinários numa espécie de Inquisições supplementares. a's vezes, o rei mandava proceder a in(!Jueri- tos nos districtos mais remotos, onde a In- quisição não tinha delegados. A' vista desses inquéritos, expediam-se ordens regias dirigi- das aos respectivos prelados para fazerem capturar taes ou taes indivíduos e proces- sarem-nos como judeus. Os tribunaes ecclesias- ticos transmittiam então essas ordens aos magistrados do logar onde as victimas resi- diam. Estes magistrados eram, porventura, os mesmos que os haviam culpado. Para pren- derem os suspeitos e conduzirem-nos á ca- beça da diocese, nomeiavam-se, não os offlciaes 68 HISTORIA DA INQUISIÇÃO de justiça da comarca ou concelho, mas agua- zis e guardas extraordinários, para o que se escolhiam, ás vezes, inimigos pessoaes dos presos. Pelos bens destes, que immediata- mente se punham em almoeda, se pagavam a esses esbirros postiços grossas subvenções, e exemplos houve de comprarem a vil preço os próprios magistrados os bens dos réus, com o pretexto de que era urgente, para oc- correr ás despezas do transito, realisar di- nheiro de contado. Assim, ficavam os que eram mais pobres reduzidos á miséria antes de condemnados. Os maus tractamentos que padeciam pelo caminho, rodeiados de guardas ferozes, e expostos ao fanatismo da gentalha, fáceis são de imaginar. Sabendo da existên- cia da bulia de 7 de abril, as victimas inter- punham recurso para o núncio ; mas, reduzi- dos á indigência, poderiam esperar protecção efficaz de um homem como Sinigaglia? Teria eile força para lh'a dar? Neste concerto fatal entre o poder civil e a Inquisição, todas as denuncias, ainda as fundadas nos pretextos mais frivolos, eram avidamente acolhidas, e assim acontecia virem a provar alguns indi- víduos, retidos nas masmorras annos e annos, que os seus accusadores eram os verdadei- ros culpados nos delictos que lhes attribuiam HISTORIA DA INQUISIÇÃO 69 a elles, e que só para Íh'os imputarem haviam perpetrado. A obscuridade da pobreza e o esplendor da opulência eram igualmente inú- teis para os indivíduos da raça proscripta. Bastaria para perder qualquer delles ter um inimigo ; quanto mais odiando-os a grande maioria da população (1). Como se isto não bastasse, os processos da Inquisição de Cas- tella vinham pelos seus eífeitos reflectir em Portugal. Em consequência das relações en- tre os chiistãos-novos dos dous países, os hebreus portugueses achavam-se, ás vezes, gravemente compromettidos, ou porque eram, posto que estrangeiros e ausentes, condemna- dos lá como herejes, ou porque os inquisido- res hespanhoes enviavam transumptos dos respectivos processos aos prelados e depois aos inquisidores de Portugal. Existe uma supplica em que um mancebo desta raça in- feliz descreve com rápidos traços a sua his- toria. Era um desses valentes que diariamente combatiam pela fé nas praças d'Africa, pra- ças que D. João ni, entretido em accender as (1) Instrumentos authenticos sobre processos fei- tos a vários indivíduos em Chaves, na Madeira e em Évora, na Symm Lusit., vol. 31, f. 109, 137, 151 V., 161 70 HISTORIA DA INQUISIÇÃO fogueiras da Inquisição, pensava já em aban- donar covardemente aos infiéis. Alli fizera estremados serviços e fora armado cavalleiro ainda na flor da juventude. Envolvido, não sabemos como, num processo remettido de Costella, e condemnado a cárcere perpetuo, fora arrastado durante sete annos de mas- morra em masmorra, até que á força de ro- gos, obtivera como allivio a reclusão no con- vento da Trindade de Lisboa. Dous annos depois, o desgraçado mancebo, que durante esse periodo padecera de continuo o marty- rio da lome, lançando os olhos aterrados para um longo futuro, pedia a el-rei que, levando- Ihe em conta os seus serviços e o padecer de nove annos, o deixasse ir morrer nas plagas da Africa em defesa do christianismo, vili- pendiado em Portugal pelas atrocidades dos inquisidores (1). Quando a bulia de 7 de abril de 1533 che- gara a Portugal, Marco delia Ruvere trans- mittira aos metropolitanos e aos demais pre- lados copias authenticas delia, sem disso dar parte ao governo. Esta circumstancia obstava á execução das letras apostólicas pelo lado (1) Corpo Chroiiol.. P.í, M. 53, N.» 63, no Arch. Noc. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 71 civil. Assim, os bispos limitaram-se a accei- tá-las sem procederem á sua promulgação. Sabía-se da existência da concessão ; os christãos-novos invocavam-na ; mas os seus eíTeitos não podiam realisar-se na practica. A' vista, porém, do breve de 2 de abril de 1534, o próprio núncio entendeu que devia dar tempo a elrei para apresentar em Roma novas ponderações, refutando, se podesse, as que se offereciam por parte da sancta sé. Conseguintemente, dirigiu aos prelados do reino uma circular para que sobreestivessem na publicação official do perdão e suspendes- sem qualquer acto tendente á execução da bulia (1). Neste estado de cousas, a corte de Portugal não carecia de se apressar extraor- dinariamente, além de que as respostas ás considerações do breve de 2 de abril não eram fáceis de achar. As consultas a este respeito protrahiram-se por alguns mezes, durante os quaes a situação de D. Henrique de Meneses e de Santiquatro se tornava cada vez mais espinhosa pela falta das instrucções e dos esclarecimentos indispensáveis para po- derem aproveitar os últimos raios de espe- (1) Consta isto da Instrucção sem data que se acha na G. 13, M. 8, N.° 2. 72 HISTORIA DA INQUISIÇÃO rança que ainda lhes restavam (1). Assim, D. Henrique, offendido com as immoralidades que via practicar na corte de Roma, insis- tia com elrei para que o mandasse retirar delia (2). Uma circumstancia, já de antemão prevista, veio entretanto augmentar os emba- raços que rodeia vam os agentes de Portugal. Desde a sua volta de ]\Iarselha, Clemente vii não gosara de um momento de saúde. EUe próprio parecia persuadido de que a morte se avizinhava. Com a vinda do estio, os pade- cimentos axacerbaram-se-lhe. Não era a ve- lhice que o conduzia ao tumulo, porque tinha apenas cincoenta e seis annos. Dores violen- tas no estômago eram, sobretudo, o seu mal. Havia quem acreditasse que morria envene- nado. Segundo alguns escriptores, a cúria ro- mana detestava-o, os príncipes desconfiavam delle, e a sua reputação era geralmente má. Foi tido na conta de avaro, desleal, pouco bemfazejo, posto que não vingativo, o que tal- (1) Carta de Santiquatro, na G. 2, M. 5, N.o 51. (2) C. de D. H. de Meneses de 19 de agosto de 1534, no Corpo Chronol., P. 1, M. 53, N." 82. As insistên- cias para ser exonerado daquelle cargo repetem-se nas cartas de 21 de agosto e 25 de setembro do mesmo anno: Ibid. N.c'^ 80 e 113. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 73 vez se deve attribuir á sua natural timidez. Em compensação, passava por sagaz, circums- pecto e atilado, de modo que o seu juizo era sempre o melhor, quando o temor ou outras paixões não o olTuscavam (1). Os últimos me- zes da sua vida foram uma dilatada agonia. Vindo a fallecer nos fins de setembro, já em julho o consideravam como moribundo e lhe subministravam os últimos sacramentos (2). Naquella situação angustiada do espirito, em que a consciência põe diante do homem a verdade em toda a sua nudez, e em que os affectos mundanos recuam á voz imperiosa da convicção ou dos remorsos, Clemente vii mandou expedir em 26 de julho um breve, no qual, recapitulando summariamente o estado da questão, e ponderando que por quatro me- zes esperara debalde uma resolução da corte de Lisboa, ordenava ao bispo de Sinigaglia fizesse vigorar a bulia de 7 de abril, estatuindo que, se D. João iii ou os seus ministros po- (1) Ciacconius, Vitse Pontif. T. 3, col. 470. (2) «Papa Clemente un giorno dipoi che io rebbi comuiiicato per viatico, estendo piú in loaltro mondo che in questo, espedi un altro breve direito ai suo núncio sopra la medessima executione delJa detta bolla» : Carta de Santiquatro, cit. 7-4 HISTORIA DA INQUISIÇÃO sessem taes obstáculos, que as solemnidades da publicação não podessem realisar-se, ficas- sem os culpados livres de todas as penas ca- nónicas impostas nos tribunaes ecclesiasticos, e considerados como absolvidos, independen- temente das formalidades prescritas naquella bulia, applicando, aliás, as censuras alli fulmi- nadas para domar todas as resistências (1). No preambulo do breve. Clemente vii alludia ao seu estado, á vizinhança da morte e ao brado da própria consciência. Esse diploma era, digamos assim, uma verba do seu testa- mento como pae commum dos fiéis. Fossem quaes fossem os abusos e corrupções que acerca deste negocio se houvessem dado na cúria romana, admittindo, até, que motivos menos puros tivessem (como se dizia em Portugal, e era verdade) (2) influído no animo do papa, é certo que naquelle momento so- lemne a sua resolução exprimia um senti- (1) Breve Ciun inter alia de 26 de julho de 1534, cit. na Verd. Elucid. Argum. N." 10, e versão por- tuguesa na G. 2, M. 1, N.° 40, no Arch. Nac. (2) «... toda a importunação que se fez ao Cle- mente pêra dar esse breve á ora da morte foy porque lhe dysse o seu confessor, induzido dos christãos-novos, que por/ft tinha avydo o dinheyro deles, que era concyencyn non lhe deyxar o per- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 75 mento legitimo e a convicção sincera, alheia a todas as considerações terrenas, de que na causa dos christãos-novos interessavam igual- mente a religião, a justiça e a humanidade. Fallecido Clemente vii a 25 de setembro, e reunido o conclave, começaram os enredos eleitoraes. Nessa conjunctura escrevia D. Hen- rique de Meneses a elrei, fazendo votos para que subisse á cadeira pontifícia algum indivi- duo cujo animo fosse favorável ás pretensões da corte portuguesa. «Mas — accrescentava elle — hão-de escolhê-lo trinta e seis diabos, que tantos são os cardeaes eleitores.» Apesar, porém, da qualificação que dava aos mem- bros do conclave, pedia a Deus que os alu- miasse naquelle empenho (1). A final saiu eleito, a 23 de outubro, o cardeal Alexandre dão lympo e lyvre. E isto he verdade e assy o dysse Santiquatro ao papa paulo perante noos. Ora veja V. A. canta verdade vos diz la o núncio que o papa non tinha avrjdo dinheyro, o qual nún- cio he o que cá escreve canto mal se faz»: l.a C. de D. H. de Meneses de 29 de outubro de 1534: Corpo Chronol., P. 1, M. 53, N.« 135. (1) C. de D. H. de Meneses de 4 de outubro de 1534: Corpo Chronol., P. 1, M. 53, N.» 120, no Arch. Nac. Veja-se também a C. de 25 de septembro, ibid. N."' 113. 76 HISTORIA DA INQUISIÇÃO Farnese, decano do sacro collegio, com o nome de Paulo iii. Eis como o arcebispo do Funchal, homem cujo defeito não era por certo a falta de capacidade, pintava a D, João III o novo pontifice. Paulo iii tinha se- tenta annos, e afíirmava que havia de viver ainda sete, mas que, se passasse além delles, viveria outros tantos. Cria o vulgo que este vaticinio o fazia por ser astrólogo, ao passo que o papa dava a entender que era por di- vina revelação. Nobre e rico, a sua eleição não encontrara resistência, nem fora nem dentro do conclave. A reunião de um concilio, onde se procurasse pôr termo ás dissidências sus- citadas por Luthero e por outros reformado- res, era idéa geralmente bem acceita na Eu- ropa, mas a que sempre Clemente vii repu- gnara. Paulo iii, que a adoptara emquanto cardeal, não podia deixar de mostrar-se em- penhado em que se realisasse aquelle pensa- mento. Assim, apressou-se em enviar para diversas partes núncios que tractassem o as- sumpto com os príncipes catholicos. Um dos seus primeiros actos foi nomeiar uma com- missão de vários cardeaes para procederem á reforma dos abusos introduzidos na cúria romana. Dizia estar resolvido a restabelecer o império da rigorosa justiça, desprezando to- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 77 das as influencias e esmagando todas as reac- ções. Affirmava que não queria augmentar a própria fortuna, e que duas netas que tinha as casaria, não com membros de familias reaes, mas sim com individues iguaes a ellas em condição. Aproveitando, todavia, os exem- plos dos seus predecessores, promoveu ao cardinalato dous netos que também tinha, posto que nenhum excedesse a quinze annos de idade, abuso extremo, que aliás elle reco- nhecia e de que promettia abster-se logo que estivessem concluidas as reformas que medi- tava. Não se conhecia pessoa que o domi- nasse, e todas as resoluções tomava de seu motu-proprio. Era prolixo e pouco practico em relação ás formulas de chancellaria, ado- ptando de preferencia as do século anterior. Tractava com menos consideração os embai- xadores, dando-lhes raramente audiência, e valia mais para elle um cardeal do que todos os ministros estranjeiros junctos. Gosava da opinião geral de incorruptivel, e estabelecera como regra respeitar os actos do seu prede- cessor, para tirar o costume inveterado, dizia elle, de destruir um papa o que outro havia feito, isso, porém, não obstava a que fosse grandemente cioso da auctcridade e regalias da sé apostólica, quebrando quaesquer exem- 78 HISTORIA DA INQUISIÇÃO pções OU privilégios concedidos por esta, fosse a que principe fosse, quando esses privilégios feriam de algum modo as prerogativas legiti- mas e os direitos da cúria romana (1). Tal era o homem que ia agora ser árbitro na contenda entre D. João iii e os seus súbdi- tos de raça hebréa. As instrucções da corte de Portugal só haviam chegado a Roma a 24 de septembro, véspera da morte de Clemente VII (2). Eleito o novo papa, os agentes de D. João III tractaram sem demora de aproveitar a nova situação, visto que o pontífice estava desligado dos compromissos do seu anteces- sor. O essencial era suspender-se a execução dos diplomas precedentemente expedidos. Pu- nham nisto todo o empenho ; porque, muni- dos de novos argumentos, e sabendo o pro- cedimento que lhes mandavam adoptar, im- portava-lhes principalmente reduzir de novo tudo á tela da discussão (3). O conde de Ci- fuentes, embaixador de Carlos v, recebera a final instrucções precisas para favorecer ener- (1) Carta de D. Martinho de 14 de março de 1535, na G. 2, M. 1, N." 48. (2) Ibid. — C. de Santiquatro, I. cit. (3) Carta de D. Martinho, cit. — Carta de Santi- quatro, 1. cit. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 79 gicamente as pretensões da corte de Portugal, e o próprio imperador escrevera sobre isso ao novo papa, que em duas audiências successi- vas concedidas aos ministros de D. João iii, nos dias subsequentes á eleição, tomou conhe- cimento do estado daquelle espinhoso negocio. Santiquatro, a quem Duarte da Paz tentara comprar com a offerta de uma pensão de oi- tocentos cruzados annuaes, e que a rejeitara, tomou a defesa do rei de Portugal nessas conferencias, a que haviam sido chamadas diversas pessoas. Um certo Burla, que exer- cia o cargo de redactor dos diplomas pontifí- cios e que favorecia os christãos-novos, foi ahi violentamente aggredido pelo cardeal, que lhe lançou em rosto os seus occultos meneios, e nessa conjunctura soube D. Henrique de Meneses da concessão do breve de 26 de ju- lho cuja existência Clemente vii prohibira se fizesse conhecer em Roma antes da sua mor- te. Estavam também presentes na sala, posto que não interviessem no debate, Duarte da Paz e outro christão-novo, chamado Diogo Rodrigues Pinto. D. Henrique de Meneses, que por muito tempo guardara silencio, de- clarou positivamente a Paulo iii que não tra- ctaria de cousa alguma emquanto visse alli aquelles dous homens. Replicou-lhe o papa 8t HISTORIA DA INQUISIÇÃO que, posto que não houvessem sido chama- dos, e que elle estivesse prompto a mandá-los sair do aposento, não era possivel deixar de ouvi-los num assumpto que tanto interessava aos seus clientes. Assentou-se a final em que se nomeiasse uma commissão para examinar o negocio, a qual o exporia ao pontífice, para com justiça se tomar sobre a matéria uma resolução definitiva (1). Em resultado do que se passara na ultima conferencia e dos esforços combinados do car- deal Pucci e do conde de Gifuentes, que nesta conjunctura tinha mostrado os maiores dese- jos de fazer triumphar a causa em que D. João III estava empenhado (2), o papa orde- nou a feitura de um breve dirigido ao núncio, em que se lhe ordenava a suspensão da bulia de 7 de abril de 1533, ou da execução delia, se já estivesse publicada, dando-se por de nenhum efifeito o breve que Clemente VII fi- zera expedir antes de morrer. Mandou igual- mente redigir outro endereçado a elrei, no qual o avisava de que, tendo-lhe os embaixa- dores apresentado as réplicas ao diploma de (1) 2.» Carta de D. H. de Meneses de 29 de ou- tubro de 1534: Corpo Chronol., P. 1, M. 53, N." 137. (2) Ibid. HISTORIA DA IXQUISIÇÃO 81 2 de abril de 1534 enviadas de Portugal, sup- plicando-lhe que as fizesse maduramente exa- minar, elle instituirá uma commissão para es- te fim, ordenando entretanto a suspensão da bulia, mas ordenando também que os inqui- sidores, e ainda os ordinários se abstivessem de qualquer procedimento judicial contra os suspeitos ou accusados de heresia, soltando- se os presos com fiança, ou sem ella, se os seus bens estivessem sequestrados, sendo uni- camente excluidos do beneficio os relapsos (1). Para fazer cumprir essas providencias Paulo III reconduzia interinamente no cargo de nún- cio o bispo de Sinigaglia (2). A situação deste em Portugal não era me- nos difficultosa do que a dos agentes de D. João III o havia sido até ahi em Roma. Com o breve de 26 de julho viera a noticia da mor- te provável de Clemente Vil, noticia que não tardou em se realisar. Queria Marco delia Ru- (1) Breves de 3 e de 26 de novembro de 1534, no M. 12 de Bulias N.° 12 e M. 7 N.» 15, e uma versão do ultimo na G. 2, N.» 9, no Arch. Nac. O primeiro destes breves só foi expedido posteriormente á sua data. Veja-se a carta de D. H. de Meneses de 5 de novembro de 1534: Corpo Chronol., P. I, M. 54, N.° 5. (2) Breve de 10 de novembro de 1534, no M. 23 de Bulias N.» 3. TOMO II o 82 HISTORIA. DA INQUISIÇÃO vere cumprir os mandados pontifícios: oppu- nha-se elrei. Já anteriormente o monarcha via com maus olhos o núncio, e não lh'o escon- dia (1). Augmentava esse facto a mutua indis- posição. D. João III prohibiu expressamente que tivessem effeito a bulia de perdão e o breve que a revalidava; mas o repi'esentanle de Roma, desprezando a coleria d'elrei, maii- dou-os publicar e intimar por notários apos- tólicos em todas ao dioceses do reino (2). Chegadas as cousas a taes termos, ás suas sollicitações na cuiúa o governo português ti- nha de ajunctar outra não menos instante, a da immediata i-emoção de Sinigaglia. Enti'e- tanto este, resolvido a proteger os conversos até onde lhe fosse possivel fazê-lo sem grave compromettimento, apenas recebeu de Roma o breve inhibindo-o a elle e aos ordinários de qualquer procedimento ulterior acerca dos christãos-novos, intimou aos prelados a reso- (1) MemonaJe: Symm., vol. 31, f. 35 (2) «Nuntius ipse viriliter se gerens, etiam contra ejusdem regis voluntatem, seu potius uon pauci mo- menti coleram, tam buliam priman veniaí, quam breve paedictum declaratorium in omnibus diclo- rum regnorum diocesis per ejusdem Nuntii notá- rios fecit publicari et intimari' . Ibid. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 83 lução pontifícia, fazendo-lhes ao mesmo tem- po sentir que, se não lhes era licito cumprir a bulia do perdão, também o não era offen- dê-Ia, e advertindo-os de que essa resoluc^^ão de modo nenhum prejudicava ao facto da in- timação, publicação e promulgação da mes- ma bulia, não se devendo, portanto, reputar infirmada nas suas disposições ou nos seus futuros effeitos (1). Em conformidade com o arbítrio que ado- ptara, Paulo III escolheu por commissarios para examinarem de novo e resolverem a questão que se ventilava com a corte de Por- tugal dous dos homens mais hábeis que ha- via na cúria, e de quem o papa confiava os mais árduos negócios, o bispo milevitano Je- ronymo Ghinucci, auditor da camará apostó- lica, e o bispo pisauriense Jacob Simonetta, auditor da Rota, ambos elevados ao cardina- lato poucos mezes depois (2). Os embaixado- (1 ) Copia da monitoria do núncio, dirigida aos prelados, com a data evidentemente antecipada de 3 de novembro de 1534, no Corpo Chronol., P. I, M. 54, N.o 2. (2) Carta de D. Martintio cit. — Ciacconius, T. 3, col. 569 e seg.— «Os juizes que são, ao menos um delles, os melhores da terra». Carta de D. Henrique Oé HISTORIA DA INQUISIÇÃO res e Santiquatro, como protector de Portu- gal, tinham a combater não só as razões que haviam servido para corroborar o breve de 2 de abril e a bulia de perdão geral, mas também as limitações com que Clemente vii promettia restabelecer a Inquisição, depois de reduzidas a effeito as providencias daquella bulia. Quanto aos fundamentos em que os cardeaes e theologos da anterior commissão estribavam a manutenção dessas providencias, oppunham-se-lhes considerações que os con- selheiros de D. João iii julgavam assas fortes para os invalidar. Entendiam os canonistas e theologos portugueses que, dada a hypothese de ter sido a conversão forçada, passara isto havia tantos annos que a maior parte dos en- tão baptisados eram fallecidos, muitos expa- triados, e outros que ainda viviam tinham ac- ceitado o facto, ficando no paiz e vivendo com exterioridades de christãos, não sendo, em todo o caso, esta razão da violência appli- cavel aos refugiados espanhoes: que a força, a tê-la havido, fora condicional, e segundo a doutrina canónica, esta não podia servir de de Meneses de 17 de março de 1535, na G. 2, M. 5, N.o 55. — «O Simonelta... como eJle é de bom ho- mem e de letrado». Ibid. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 85 escusa ao crime de heresia; que os filhos e netos dos primeiros conversos, embora edu- cados a occultas por seus pães na lei de Moy- sés, podiam ter-se convencido da verdade do christianismo, seguindo-o na apparencia por tanto tempo, assistindo aos actos do culto, aprendendo a doutrina catholica, e ouvindo os pregadores. Discutiam depois os princípios invocados em Roma acerca da liberdade e espontaneidade da compulsão condicional, is- to é, doutrinas mais ou menos exaggeradas de intolerância e fanatismo, e tornavam a ci- tar em abono da compulsão exemplos de prín- cipes piedosos, argumento a que já tinham recorrido, alludindo a Sisebuto. Quanto a elles, o sangue e as tribulações dos hebreus, longe de mancharem a memoria d'elrei D. Manuel, deviam ser para o fallecido monarcha um ti- tulo de gloria; porque os que haviam perdido suas almas por contumazes tinham- no feito apesar delle, e os sinceramente convertidos deviam agradecer- lhe o ganharem o céu. Vê- se que a accusação do desleixo que houvera em doutrinar os conversos ferira vivamente os defensores da intolerância, e que procura- vam por todos os modos provar que nesta parte o papa fora mal informado; mas limita- vam-se a vagas negativas. Entrando no exa- 86 HISTORIA DA INQUISIÇÃO me da defesa das provisões especiaes para se verificar o perdão, aggrediam vantajosamente os seus adversários, sustentando que a bulia não providenciava acerca daquelles que, indo manifestar perante o núncio que ha\dam sido baptisados á força, se apresentassem francamente como sectários da lei de Moysés. Era, talvez, esse o lado mais vulnerável da bulia. Debalde tinham querido os theologos de Clemente vii applicar aos pseudo-conver- sos certas provisões daquelle diploma. Todas versavam sobre as condições e formas do perdão, e, segundo as doutrinas em que a bulia se estribava, os que nunca haviam con- sentido em serem christãos não podiam ser perdoados, porque não eram passíveis de pe- na alguma. Suppondo, porém, que devessem ser incluídos na categoria daquelles acerca dos quaes o papa se reservava prover, á vis- ta das suas declarações e dos informes do núncio, entendiam, e entendiam bem, que ne- nhuma outra solução razoável havia, se não ordenar que os deixassem sair do reino com seus bens a viverem onde quizessem como judeus. Mas ponderavam que nesta hypothe- se, todos diriam ter sido baptisados á força, e iriam muitos levar para a Turquia e para outros paizes d'infiéis as suas avultadas ri- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 87 quezas, deixando Portugal empobrecido. Nes- ta parte o pensamento dos fanáticos revela-se cora uma innocencia quasi pueril. O remédio aos males que receia vam seriam a tolerância; seria repor as cousas no estado em que se tinham conservado durante quatro séculos. Essa solução simples, razoável, christan, era a que não lhes occorria. Queriam persegui- ção e ouro. Como, porém, as provisões da bulia de 7 de abril eram ás vezes illogicas, em relação aos princípios geraes que nella se es- tabeleciam, a defesa, poderosa, irresistível na doutrina geral, era não raro fraca nas parti- cularidades. A' objecção de que, dando-se co- mo meio de obter o perdão a confissão auri- cular, viriam, para se porem a salvo, os que ainda eram judeus occultos, a abusar de um sacramento em que não criam, tinham res- pondido em Roma que não era de presumir procedessem assim os que fossem sincera- mente sectários da lei de Moysés. A réplica dos theologos portugueses era nesta parte de- cisiva. Que tinham os pseudo- christãos feito durante mais de trinta annos, senão demons- trar a vaidade de semelhante supposição, abu- sando de todos os sacramentos? Os que qui- zessem ficar no reino, e seriam muitos, por- que o governo não lhes havia de tolerar que 88 HISTORIA DA INQUISIÇÃO levassem comsigo as suas riquezas, procede- riam infallivelmente assim. Proseguiam discu- tindo de novo, com mais ou menos felicidade, as formulas e condições do perdão, reforçan- do as ponderações sobre os inconvenientes anteriormente lembrados, e apontando outros não propostos nas conferencias passadas. Ver- saram principalmente sobre a certeza da im- punidade que se dava aos culpados de here- sia, ainda admittido o presupposto de que não eram aquelles que não tinham acceitado vo- luntariamente o baptismo. Depois, mostravam por novas faces a impropriedade de ser um estrangeiro, o núncio, quem julgasse de novo os já sentenciados, e que se concedesse a es- tes a revisão dos processos, tornando a insis- tir na injuria á Inquisição e prelados de Cas- tella que ia envolvida em semelhante disposi- ção, da qual podiam, aliás, resultar graves perturbações entre as duas coroas. Esforça- vam-se, finalmente, eth atenuar o terrível ar- gumento dos cardeaes De Cesis e Campeggio e dos theologos seus adjunctos nas primeiras conferencias, deduzido dos actos de D. Ma- nuel e do próprio D. João iii, actos pelos quaes tinham assegurado aos christãos-novos a im- punidade, não só quanto ao passado, a que exclusivamente dizia respeito a bulia de 7 de HISTORIA DA INQUISIÇÃO 89 abril, mas também quanto ao futuro, e futuro assas dilatado. A réplica era nesta parte de- plorável. Ousavam allegar que não cabia na auctoridade temporal dar aquelle perdão, se- não pelo que tocava aos effeitos civis, e que o rei não podia obstar a que os tribunaes ec- clesiasticos perseguissem aos que delinquis- sem em matérias de fé. Entendiam que os inquéritos, contra os quaes nos diplomas de D. Manuel e de seu filho se assegurava a im- munidade aos christãos-novos, vinham a ser os das justiças seculares, inquéritos que effe- ctivamente, diziam elles, não eram applica- veis ás questões de heresia. Esses privilégios, porém, não se oppunham a que os prelados diocesanos procedessem canonicamente con- tra os suspeitos, e se os bispos não o tinham feito, a culpa não era do monarcha (1). As- sim, declarava-se em nome de D. João iii que os privilégios dos hebreus, na apparencia tão amplos e precisos, não eram, em virtude da restricção mental do soberano, senão uma (1) Resposta que deram os Letrados sobre o ne- gocio da Inquisição, etc. Doe. sem data, mas que evi- dentemente é a resposta ás allegações (que se acham na Symmicta, vol. 31, f. 395 e segg. N.° 16 e 17) fei- tas na cúria: G. 13, M. 8, N.° 5, no Arch. Nac. 90 HISTORIA DA INQUISIÇÃO perfeita buíra. Que diíTerença essencial havia em serem os conversos perseguidos, presos, e castigados em nome das leis temporaes ou das leis ecclesiasticas ? A doutrina que se in- vocava agora era em geral exacta, mas havia ahi outra questão. O sentido obvio, indubitá- vel daquelles privilégios, consistia na garan- tia contra a oppressão material. Qualquer in- terpretação diversa seria uma deslealdade, um sophisma indigno. A esta oppressão podia o rei obstar em todas as hypotheses. Bem pou- co importava aos pseudo-conversos que os bispos os julgassem judeus ou herejes, e que os condenassem ás penas espirituaes. O que elles não queriam era ser mettidos em cala- bouços, atormentados no potro, lançados nas chammas, entaipados em cárceres perpétuos, espoliados e reduzidos á miséria, elles e seus filhos. Taes violências e atrocidades, por uma ridicula ficção jurídica, por uma subtileza in- significante de formulas, ficavam a cargo do poder temporal; eram o resultado do auxilio do braço secular, pelo qual a auctoridade pu- blica se convertia em executora de alta justi- ça das sanguinárias decisões tomadas no tri- bunal da fé. O que não tinha duvida era que ou se recorrera a um atroz engano para ador- mecer as victimas á borda do abvsmo, ou a HISTORIA DA INQUISIÇÃO 91 interpretação que se dava agora aos privilé- gios da gente hebréa equivalia a uma negação atraiçoada da palavra real, a uma vergonhosa desculpa dos esforços que subrepticiamente se haviam empregado, três annos antes, para estabelecer a Inquisição em Portugal. A impugnação ás allegações feitas na cúria a favor das providencias tomadas por Cle- mente VII era acompanhada das bases em que eirei entendia dever assentar o perdão, se o papa insistisse em concedê-lo. Estas bases, que, em harmonia com as considerações of- ferecidas pelos theologos e canonistas portu- gueses, excluiam a intervenção do núncio, presuppunham o restabelecimento da Inqui- sição, e que seria applicada pelos inquisido- res a indulgência que se pretendia ter com os conversos. Sustentava-se nessas bases a doutrina de que o perdão não devia ser dado por confissão auricular, mas por via de re- conciliação solemne. Cedia-se no ponto de se applicar o beneficio da bulia de 7 de abril aos accusados e presos, mas com a limita- ção de se exceptuarem aqueiles cujos delictos houvessem já sido provados e sentenciados. Propunha-se que fossem os inquisidores quem designasse o praso que se havia de dar aos ausentes para virem gosar daquelle 92 HISTORIA DA INQUISIÇÃO beneficio. Excluiam-se deste todos os que de- linquissem posteriormente á concessão. Accei- tava-se a modificação feita no breve de 2 de abril de 1534, de que os simplesmente infa- mados ou suspeitos fossem obrigados a jus- tificar-se judicialmente (embora o não fossem a abjurar e reconciliar-se, como elrei ante- riormente queria) e não por duas ou três tes- temunhas extrajudiciaes, como se estatuía na bulia. A'cerca dos bens dos christãos-novos, buscava-se evitar a odiosa suspeita que havia em Roma de quanto zelo da fé não passava em Portugal, do mesmo modo que se dizia succeder em Castella, de um baixo intuito de espoliação, convindo elrei em que não hou- vesse confisco para os culpados, incluídos os próprios relapsos, e isto durante o espaço de sete annos. Exceptuavam-se os que morres- sem impenitentes, os ausentes, que por con- tumácia não viessem defender- se pessoal- mente, e os que delinquissem depois de pu- blicada a nova bulia. Com estas modificações, e concedendo-se tudo o mais que D. Henrique de Meneses levava apontado, D. João iii não só admittia o perdão, mas ainda o soUicitava (1). (1) Apontamentos para se apresentarem ao papa: G. 2, M. 2, N.» 24, no Arch. Nac HISTORIA DA INQUISIÇÃO 93 Numa instrucção secreta auctorisavam-se os embaixadores para transigirem com a cú- ria romana, quando não fossem plenamente acceitas as condições que D. Henrique levara com as modificações que se enviavam agora. A transigência era na questão dos relapsos que o fossem na conjunctura de se decidir a contenda. Concedia-se-lhes, em geral, o bene- ficio da segunda reconciliação, evitando elles assim a pena de morte e as demais conse- quências de um crime reputado sempre ca- pital, mas impondo-se-lhes, a arbitrio dos in- quisidores, uma penitencia mais dura do que a dos semel-relapsos, isto é, dos que só uma vez tinham sido accusados e processados. As excepções, porém, eram taes, que a bem di- zer, apenas aquelles cuja reincidência estava occulta poderiam tirar desta concessão, na apparencia tão generosa, alguma vantagem real (1). Afora essa instrucção, D. João iir (1) Papel de uns apontamentos, etc. Ibid. N.*» 28. Este documento é um consectario do anterior. Ne- nhum delles tem data ; mas, pelo seu conteúdo, não podem pertencer senão á epocha em que os col- locámos. O documento sem data na G. 2, M. 5, N." 44 parece conter os apontamentos definitivos que nessa conjunctura se mudaram acerca dos re- lapsos. 94 HISTORIA DA INQUISIÇÃO enviava aos embaixadores cartas de crença especiaes para exigirem ofíicialmente do papa a remoção de Marco delia Ruvere, cujas hos- tilidades patentes tinham, como já vimos, che- gado ao ultimo auge (1). Habilitados assim os agentes de Portugal em Roma para obterem melhores condições, remetteram-se-lhes junctamente cartas para o papa, em que elrei, abstendo-se de discutir a matéria, pedia se determinasse tudo conforme as bases que anteriormente proposera e agora modificava, e isto pura e simplesmente, como graça especial do pontifice. Evidentemente queria-se evitar assim a situação humilhante de pleitearem os representantes da coroa por- tuguesa com os procuradores dos christãos- -novos perante delegados apostólicos, o que tinha convertido uma negociação diplomática em questão quasi judicial. Em harmonia com esta idéa, escrevia-se a D. Henrique uma carta cuja matéria os embaixadores communi- cariam ao papa, e outras secretas, mas idên- ticas, dirigidas a cada um delles, em que se lhes advertia que o papel redigido pelos ca- nonistas e theologos portugueses não o de- (1) A minuto das cartas especiaes de crença esta appensa aos apoalumenlos, na G. 2, M 2, N " 2i- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 95 viam mostrar absolutamente a ninguém, mas estudá-lo elles, propondo essas razões nas conferencias como cousa própria, á medida que o julgassem opportuno, e sem que nunca dessem a entender que lhes haviam sido sug- geridas de Portugal. Esperava elrei que Roma cedesse, vistas as concessões mutuas que já se haviam feito ; mas ordenava-lhes que, no caso de não chegarem a accordo, lhe dessem disso prompto conhecimento, para receberem novas instrucções, e que, se Álvaro Mendes de Vasconcellos os avisasse de que Carlos v recommendava de novo o negocio ao seu em- baixador em Roma, tractassem com este a questão, acceitando quaesquer serviços que lhes fizesse, bons ou maus, e conservando-se em perfeita harmonia com elle. Estas cartas eram acompanhadas de outras dirigidas a diversos cardeaes, ou que tinham favorecido as preten- sões d'elrei, ou que se esperava attrahir por esse meio a protegê-las nos futuros debates (1). Nestes, a vantagem era igual para a causa dos christãos-novos e para as pretensões d'elrei. Os mútuos accordos entre Duarte da (1) Minuta da carta a D. H. de Meneses (semdataj, na G. 2, M. 2, N.° 36. O seu contexto mostra referir- se aos apontamentos e instrucção de N.°' 24 e 28. 96 HISTORIA DA INQUISIÇÃO Paz e o arcebispo do Funchal podiam actuar secretamente na decisão final do papa ; mas na commissão havia duas influencias igual- mente fortes que se contrapunham. Santi- quatro, que geralmente se dizia estar a soldo de D. João iii, e a quem muitos dos seus co- legas no sacro coUegio não duvidavam de lançar em rosto esta suspeita (1), fazia todos os esforços para que triumphassem os dese- jos do seu protegido, e a sua situação de cardeal e penitenciario-maior dava-lhe uma preponderância tal, que era considerado na commissão mais como juiz do que como pro- curador (2). Ghinucci, porém, patrocinava abertamente a causa dos christãos-novos. Tinha escripto um livro a favor delles e feito imprimir a sua obra (3). Este favor não era (1) «até lhe dizerem outros cardeaes que bem peitadodevia de estar de V. A.». C. de D. H. de Me- neses de 17 de março de 1535, 1. cit. (2) «Papa Paolo. . . messe la flnale deliberatione nelli duoi commissarii suoi... ed in me»: C. de Santiquatro de 14 de março de 1535, I. cit. (3) «Auditor Camerae est suspectissimus in ista causa ; tum quia fuit advocatus prsedictis conver- sis; tum quia scripsit pro eis et consilium fecit stampare» : Papel dado em Roma aos embaixadores, etc. em Sousa, Annaes de D. João iii, pag. 459 e seg. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 97 provavelmente gratuito ; mas é certo que se dava em Ghinucci uma circumstancia que legitimava a sua má vontade ás cousas da Inquisição. Contavam-se com horror as atro- cidades daquelle tribunal em Hespanha, atro- cidades que já em outro tempo haviam obri- gado Leão X a tomar, ou a fingir que tomava, severas providencias contra elle. O nome de Lucero tinha-se tornado proverbial em Roma como compendio de crueldades, e Ghinucci estivera embaixador em Castella, d'onde trou- xera uma espécie de memorando dos abusos que a Inquisição ahi practicava (1). Como fiel da balança, restava o auditor Simonetta, acerca de cuja probidade e intelligencia ha testemunhos insuspeitos (2). Foram em varias conferencias ouvidos os embaixadores, e das (1) «As tiranias que aqui estão cridas da Inqui- sição de Casteila... que não ha lá (em Portugal) Luzeiros» : Carta de D. H. de Meneses, cit. — «A In- quisição de Castella, de que falia todo o mundo»: Carta de D. Martinho de 14 de março de 1535, 1. cit. — Llorente, Hist. de Tlnquis., T. i, c.ii.art. 5. — Carta de Santiquatro de 14 de março, cit. (2) Além do que a favor de Simonetta se pôde de- duzir do Memorial dos christãos-novos, no vol. 31 da Symmicta, e da qualificação de bom homem e letrado, com que o caracterisa D. Henrique de Me- TO.MO II 7 98 HISTORIA DA INQUISIÇÃO suas allegações mandava a commissão dar sempre vista a D. Duarte da Paz, que conti- nuava a sustentar com perfeição o seu papel. O conde de Cifuentes empregava toda a in- fluencia, como enviado de Carlos v, a favor de D. João iii (1), e a preponderância do mi- nistro de Castella inquietava seriamente os agentes dos christãos-novos, a ponto que Duarte da Paz lhe dirigira uma exposição dos factos, e procurara movê-lo, senão a tomar o partido dos opprimidos, ao menos a mostrar- -se-lhes menos adverso (2). Além disso, no meio das vivas discussões, que não podia deixar de suscitar o complexo da negociação, o destro hebreu, em vez de allegar vagamente, como até ahi fizera, os privilégios dos con- versos concedidos por D. Manuel e revalida- dos por seu filho, apresentou, emfim, aos commissarios apostólicos traslados authenti- cos dos respectivos diplomas e, além disso. neses na carta de 17 de março de 35, ha o vermos os elogios que se lhe fazem na correspondência de um embaixador ainda mais hábil, D. Pedro Masca- renhas. (1) Carta de D. H. de Meneses de 5 de novem- bro de 34; Corpo Chronol., P. i, M. 54, N.» 5. (2) Carta do dicto de 6 de março do mesmo mez: Ibid. N.0 8. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 99 certidões dos testemunhos dados a favor dos mesmos conversos pelo bispo de Silves D. Fernando Coutinho, quando fora obrigado a manifestar o seu voto acerca dos crimes do judaismo (1). Foi decisivo o golpe. Mezes an- tes, sabendo que existiam estes documentos em Roma, D. Henrique de Meneses tinha obtido copia delles (talvez havida pelo arce- bispo da mão de Duarte da Paz) e enviado essa copia para Portugal. Duvidava da sua genuinidade, porque elrei nunca lhe falara sobre tal assumpto. Apesar, porém, de pedir instrucções a semelhante respeito, não rece- bera resposta (2). Assim, Ghinucci e Simo- netta impunham silencio, tanto aos embaixa- dores como a Santiquatro, dizendo que, se mostrassem serem falsos os privilégios, es- tariam por tudo quanto elrei desejava ; mas que, se não o eram, a corte de Roma não de- via tomar sobre si o odioso de invalidar os effeitos da clemência dos príncipes portugue- ses, senão quando se convencesse de que (1) Carta de D. Martinho de 14 de março, 1. cit. Sobre as opiniões do bispo de Silves que Duarte da Paz invocava veja-se o vol. i, pag. 262 e segg. (2) Carta de D. H. de Meneses, cit. — Carta de D. Martinho, cit. 100 HISTORIA DA INQUISIÇÃO d'ahi resultavam vantagens para a religião. Era visivel a ironia do dilemma. A principio, os commissarios pontifícios accediam de mo- dificar alguns pontos á bulia de perdão, mas recusavam formalmente convir em que se revalidasse o estabelecimento do tribunal da fé. Depois de muitos debates cederam a final. Acerca do perdão, a modificação principal que adoptaram foi estabelecer uma distincção entre os hebreus que haviam sido converti- dos á força por D. Manuel e os que não po- diam allegar violência. Os primeiros não de- viam ser considerados como relapsos se, depois de perdoados, reincidissem : os segun- dos sê-lo-hiam. Convieram em que da enume- ração que se fazia na bulia de 7 de abril dos indivíduos a quem se estendiam os seus be- nefícios, se ex pungisse a designação de bis- pos, cónegos, etc, aos quaes alli se fazia a affronta de suppor capazes de judaisarem, substituindo- se aquella enumeração por ter- mos genéricos. Quanto á execução da nova bulia consentiam em que fosse encarregada a um individuo designado por elrei, uma vez que não estivesse publicada a de 7 de abril, porque, nessa hypothesse, deveria vigorar esta, e ser executor delia o núncio. Quanto á In- quisição, convinham em que se mantivesse; HISTORIA DA INQUISIÇÃO 101 mas insistiam sobre tudo em dous pontos capitães : em não haver cárceres incommuni- caveis, por espaço de oito annos, e em fica- rem, durante doze, os bens dos sentenciados aos seus legítimos herdeiros christãos. Des- tas e de outras condições menos importantes não houve demover Simonetta e Ghinucci (1). Levada a decisão dos commissarios ao co- nhecimento do papa, os agentes de D. João in tentaram todos os meios de melhorar a sua causa. Recorreram ao embaixador de Carlos V, e D. Henrique de Meneses, que esperava protecção dos cardeaes Travi e Cesarino, teve de submetter-se com bem pouco resultado a frequentes humilhações da parte delles. Nos debates perante Paulo iii, Simonetta, cujos austeros principies eram conhecidos, chegou a manifestar duramente a sua indignação, ouvindo os agentes portugueses insistirem na idéa de que fossem excluídos os prelados diocesanos de intervirem nos processos da Inquisição, ainda quando pretendessem usar desse inauferivel direito. A' força de ne- gociações e de insistência, o mais que obti- (1) O transumpto das resoluções flnaes dos com- missarios Simonetta e Ghinucci acha-se na G. 2, M. 1, N.° 35. 102 HISTORIA DA INQUISIÇÃO veram foi que o papa, tendo convindo no restabelecimento do tribunal da fé, reduzisse os dous períodos de oito annos para serem os cárceres accessiveis e de doze para não haver confiscos a sete e a dez. Quanto a esta ultima clausula, a corte de Roma reservava para si, passado aquelle praso, appreciar a legitimidade ou conveniência de taes confis- cos, restricção proposta pelos commissarios, e acerca da qual Paulo iii se mostrou iníle- xivel apesar dos esforços dos embaixadores e do cardeal Santiquatro (1). Ao passo que se redigiam as minutas das novas bulias, que se deviam expedir depois de acceitas por D. João iii, e de que por isso se mandaram copias para Portugal, Duarte da Paz e os protectores dos christãos-novos redobravam de actividade para obstarem ás consequências que anteviam. Tinha-se decla- I ado oíficialmente que, em referencia á bulia de 7 de abril, se entenderia dar-se nella a cir- cumstancia de já publicada, se o núncio a houvesse communicado aos bispos, ou lh'a tivesse notifica' lo por algum modo, hypothese na qual as recentes modificações ficariam de (1) Carta de D. H. de Meneses, cit— Carta de D. Mai'linlio, cit. HISTORIA Da inquisição 103 nenhum eííeito (1). Anteriormente viu o leitor que esse facto se verificara. Assim, a redacção daquella minuta podia considerar-se antes como uma espécie de satisfação ao rei do que como cousa positiva. O que se tornava mais grave era o restabelecimento do tribunal da fé, embora com restricções importantes, mas que estavam longe de poderem cohibir todas as tyrannias dos inquisidores. Se acreditar- mos o testemunho dos christãos-novos, as (1) Ibid. — A copia da minuta da nova bulia de per- dão enviada a D. João iii existe na G. 2, M. 2, N.® 6, no Arch. Nac, tendo por fora duas notas, uma em la- tim, outra em vulgar rubricada pelo arcebispo do Funchal e por D. Henrique de Meneses, na qual se lê em substancia o mesmo que nas cartas dos dous ministros, de 14 e 17 de março. A nota em vulgar é curiosa, porque mostra a cautela que era necessário empregar com a cúria romana : «Isto entendem es- tes auditores: se lá este perdão não fie ja publicado. E avisamos que entendem por publicação o ser no- tificada aos prelados : e nisto de publicada ou noti- ficada, ou nota a todos, não fazem diíferença. Se a V. A. acepta, decrare isto ao núncio, porque se cá não apeguem a isto, e venha com a mão do núncio assinado tudo o que he feito, para que seja craro. Em nosso poder fica o próprio polo não negarem.— D. Henrique M.— D. M. de Portugal Primas Arceb. do Funchal.» 104 HISTORIA DA INQUISIÇÃO suas diligencias para minorarem o perigo que os ameaçava não foram inteiramente infru- ctuosas. Paulo iii prometteu dar-lhes ainda outras garantias na bulia da Inquisição. Taes seriam a de haver sempre recurso para Ro- ma, e a de se prohibir os inquisidores que fizessem aos réus, durante os tractos, pergun- tas acerca dos crimes de outros individuos, meio atroz de que elles frequentemente se va- liam para multiplicarem o numero das suas victimas (1). Desde o começo das negociações, D. Hen- rique de Meneses previra, apesar dos esforços do cardeal Pucci e da protecção do conde de Cifuentes, que o resultado não havia de cor- responder inteiramente ao que se pretendia. Aconselhava por isso que de parte a parte se fizessem concessões. Para dar em Roma uma demonstração publica de desagrado contra Duarte da Paz, e em harmonia com os con- (1) Memoriaie, Symm., vol. 31, 1'. 37. Na corres- pondência dos embaixadores não se acham mencio- nadas estas duas restricções. Todavia no Memorial, os christãos-novos, depois de se referirem a ellas, como concedidas com audiência dos agentes d'elrei, invocam a este respeito o testemunho do próprio papa : «Prout de dieta S. S. voluntate, eadem S. S. fidem indubiam facere potes l.» HISTORIA DA INQUISIÇÃO 105 selhos que elle próprio lhe dera offerecendo- se para espia, D. João iii ordenara ao arce- bispo do Funchal que o exauctorasse do ha- bito de Christo ; mas D. Martinho nada fize- ra, ignoramos com que pretexto. D. Henrique recebeu então novas instrucções a este res- peito. Quiz cumpri-las ; mas como para isso era necessário attrahir á embaixada Duarte da Paz, e o agente dos hebreus estava preve- nido, soube este evitar os laços que o embai- xador lhe armara com semelhante intuito. No meio das resistências que encontrava por toda a parte, o embaixador extraordinário reprimia a custo os Ímpetos da sua cólera acerba con- tra Duarte da Paz, e na impossilidade de se vingar delle, escrevia para Portugal, aconse- lhando que se perseguissem e atemorisassem com a perspectiva das fogueiras da Inquisição os chefes dos conversos que subministravam dinheiro aos agentes em Roma (1). Não sabe- mos até que ponto foram taes conselhos se- guidos ; mas vemos que nem por isso os re- sultados foram excessivamente vantajosos. (1) Carta de D. H. de Meneses de 4 de outubro de 34; Corpo Chronol., P. 1, M. 53, N.<> 120. — Carta do dicto de 6 de novembro : Ibid. M. 54, N.» 6. — Carta do dicto de 26 de novembro: Ibid. N.^» 18. 106 HISTORIA DA INQUISIÇÃO Remettendo as resoluções definitivas do pontifice, tanto os embaixadores como Santi- quatro escreveram a elrei. Inquietava-os o descontentamento que receberia com o resul- tado daquella missão ; mas era preciso fazer- Ihe comprehender bem o estado das cousas, e mostrar-lhe que elles, no desempenho das suas funcções, não tinham omittido diligencia alguma para as levar a bom termo. O cardeal protector, historiando rapidamente as phases por que passara o negocio, accusava o des- leixo com que o governo português tractara este a principio, attribuindo exclusivamente a insistência no perdão geral e as restricções que se punham aos futuros inquisidores á im- pressão que haviam produzido na cúria os privilégios concedidos aos conversos por D. Manuel e por elle rei actual. Ponderava-lhe, além disso, a necessidade da indulgência para com homens violentados a receber o baptis- mo, e consolava-o das restricções impostas á Inquisição, sobretudo no que tocava ao praso da suspensão dos confiscos, lembrando-lhe quão rápidos tugiam os annos (1). A carta do arcebispo do Funchal era noutro estylo e re- (1) Carta de Santiquatro de 14 de março de 1535, 1. cit. HISTORIA DA INOLISIÇÃO 107 digida com arte. Mostra va-se profundamente irritado com a conclusão do negocio ; mas ao mesmo tempo assegurava que seria impossi- vel obter novas concessões. Para convencer disto o rei, pintava-lhe Paulo iii como homem de caracter indomável e tenaz nas suas con- vicções. Do mesmo modo que Santiquatro, attribuia principalmente o mau resultado do empenho aos privilégios de D. Manuel ; mas dava junctamente a entender que as allega- çôes mal pensadas remettidas de Portugal, e a proposta para não haver confiscos só por sete annos, que parecia inspirada pela anciã de espoliar os christãos-novos, muito haviam contribuido, também, para a resolução menos favorável. Lançava suspeitas sobre o embai- xador hespanhol por admittir em sua casa Duarte da Paz e ouvi-lo publicamente, elle que tinha todos os dias conferencias secretas com o procurador dos conversos. Dilatava-se acerca das humilhações que lhe faziam tragar e a D. Henrique, não só os curiaes, mas até o agente de Carlos v, e tornava a insistir na idéa de que fora grande erro não se lhe haver entre- gado este negocio só a elle sem se communi- car a mais ninguém. Confessava, todavia, os numerosos serviços que D. Henrique de Me- neses fizera, elogiando a sua incansável acti- 108 HISTORIA DA INQUISIÇÃO vidade, acaso porque essa carta devia ser vista pelo seu collega. Lembrava a elrei três expe- dientes que havia a adoptar. Era o primeiro abandonar a empreza, e deixar esquecer tudo quanto se tinha passado, para o que julgava seriam necessários muitos annos. O segundo, que revelava a astúcia e a immoralidade do arcebispo, era curiosissimo. Consistia em mos- trar elrei que mudara de opinião ; escrever para Roma sollicitando um perdão incondi- cional para todos e para tudo, redigido em meia dúzia de linhas, ficando depois livre aos prelados inquirirem, se quizessem e como qui- zessem, conforme o direito commum, dos de- lidos contra a fé ; pedir conjunctamente ao papa que admoestasse os bispos para que en- sinassem as suas ovelhas e fossem vigilantes contra as heresias ; e declarar depois disto que não queria Inquisição. A consequência seria fazerem os prelados o que até alli ti- nham feito, que era faltar ao seu dever ; e tanto mais que, sendo irmãos do próprio mo- narcha ou creaturas suas, não se atreveriam a desobedecer-lhe (1). Passados dous annos. (1) «os ordinários farão como atéqui fizerão, que foi não fazerem o que devião ; e mais todos são ou vossos irmãos ou vossas feituras ; não passarão o HISTORIA DA INQUISIÇÃO 109 accusá-los-hia daquillo mesmo que lhes man^ dará praticar, e pediria então a Inquisição, que lhe concediriam com as condições que elle quizesse. O terceiro arbitrio era imitar Henrique viii de Inglaterra e negar a obediên- cia ao papa, com a differença de que o prín- cipe inglês o fizera só por impulso das pró- prias paixões, e o de Portugal fa-lo-hia por motivos justos. Pelo que tocava aos confiscos, talvez por compromissos com Duarte da Paz, ou talvez porque elle próprio interessava na doutrina da inviolabilidade da palavra real, o arcebispo ia mais longe do que se devia es- perar da sua dissimulação. Era de voto que elrei desistisse absolutamente de haver os bens dos condemnados, vistas as solemnes promessas de seu pae, revalidadas por elle ; porque em Roma todos se assombravam de que pretendesse trahi-las. Affirmava que não se intromettia a avaliar semelhante procedi- mento por serem cousas de príncipes; — «mas nós outros — accrescentava elle — quando ahi promettemos alguma cousa, fazem-no-la cum- prir nos tribunaes de vossa alteza. Se a fé publica e real se não guardar, que haverá que V. A. lhes ordenar» : Carta de D. Martinho de 14 de março de 1535, 1. cit. 110 HISTORIA DA INQUISIÇÃO neste mundo que tenha firmeza? Assim, po- der-se-hão annullar os privilégios, tenças e doações». — Contava D. Martinho com que essas phrases fossem lidas pelos validos e ministros, locupletados e engrandecidos por mercês regias? O modo como terminava a carta não era menos notável. Tinha-o avisado seu irmão, o conde de Vimioso, de que em Portugal se conheciam já as suas occultas machinaçoes e das inferências que d'ahi se deduziam (1). Estava, portanto, na borda de um abysmo, de que só a audácia podia sal- vá-lo. Escrevera logo ao conde, vindicando a sua innocencia. Simulara nessa carta uma in- dignação que subia a ponto de insultar a pes- soa do soberano. — «Não acho infâmia maior — dizia elle — que um príncipe possa practi- car, do que saber que se dizem cousas taes de um ministro seu, e não o punir ou áquel- les que as inventam». — Dadas estas explica- ções, se não recebesse condigna satisfação, «estava resolvido — accrescentava — a proce- der de modo que constasse ao mundo como (1) Estes avisos consta terem sido dados ao ar- cebispo pelo conde de Vimioso da Carta de D. H. de Meneses de 1 de novembro de 1535: na G. 20, M. 7, N.o 23, no Arch. Nac. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 111 sabia cumprir com o que devia a si pró- prio».— Para arcebispo, D. Martinho esquecera de mais em Roma os preceitos do evangelho. — ((Dissimular injurias e deshonras — observava o altivo prelado — é cousa que não fazem se- não aquelles que as merecem». — Attribuia a D. Henrique de Meneses as accusações que lhe faziam em Portugal. — ((O meu coUega — concluía D. Martinho — é excessivamente des- confiado. Não falo, por isso, ao papa nem a ninguém, sem elle estar presente. Ha nisso vergonhas que, concluido este negocio, eu não soffreria, nem ser pontifice. Um de nós ha-de deixar o cargo (1)». — Com a mesma audácia escrevia agora a D. João iii, repellindo as sus- peitas de deslealdade. Queixava-se dos enre- dos da corte e do mau despacho que tinham os seus negócios particulares, consolando-se com a esperança de que um dia elrei lhe faria justiça, conhecendo a sua innocencia, e alludia aos documentos que anteriormente dera da sua lealdade. Mostrava-se insolente, para fin- gir que era victima dos seus inimigos. — ((Não me pesara — dizia — que vossa alteza man- (1) Fragmento da C. de D. Martinho ao conde de Vimioso de 15 de fevereiro de 1535, no Corpo Chro- nol., P. 1, M. 54, N.077. 112 HISTORIA DA INQUISIÇÃO dasse queimar vivo a mim ou a qualquer ou- tro embaixador que faltasse ao seu dever, mas que o mesmo se fizesse aos accusadores quando não provassem seu dicto. Rogia-se em Lisboa que eu recebia dinheiro dos judeus que tinha de sentenciar (1) : o mesmo se disse já de vossa alteza. Culpam-me de novo agora : também culpam a vossa alteza de que não tem em mira senão arrebatar-lhes os bens. E deve crer-se tal falsidade»? — Esta linguagem insolente derrama luz sobre os successos an- teriores. Vê-se que a voz publica tinha estam- pado na fronte do monarcha o ferrete da cor- rupção. Provavelmente era calumnia ; porque reputamos D. João iii um fanático sincero, e portanto, incapaz de se deixar corromper em detrimento das suas idéas exaggeradas. En- tretanto, não se podendo explicar plausivel- mente o abandono em que estiveram os ne- gócios da Inquisição na mais difficil conjun- ctura, senão pela poderosa influencia do ouro dos christãos-novos, cremos que essas vozes populares não seriam absolutamente infunda- das, e é possível que se houvesse attribuido ao rei a corrupção dos seus ministros. Mas (1) Alludia provavelmente ao tempo em que era legado à latere. Veja-se o vol. i, p. 252 e segg. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 113 as outras suspeitas tinham melhor fundamen- to. Que, actuado pelo ódio contra uma parte dos seus súbditos, D. João iii se lembrasse também ás vezes dos proventos que o fisco tiraria de elles serem exterminados ; e que ao fanatismo se associasse no seu espirito uma cubica que não o excluia, é facto altamente provável. A carta de D. Henrique de Meneses, em que dava particularmente conta ao rei do me- nos feliz resultado da sua missão, tinha ca- racter diverso da do seu collega. Ahi a ma- gna e o despeito são evidentemente sinceros. Revela- se no estylo delia certa rudeza de pen- samento e de phrase própria de uma Índole irritável e impetuosa, mas franca e leal. Des- crevia os invencíveis obstáculos que encon- trara, e expunha resumidamente as conces- sões que se tinham podido obter. Queixava-se amargamente de não lhe haverem dado ins- trucções acerca dos privilégios dos christãos novos. Insistia no que já por mais de uma vez pedira; em que o mandassem sair de Roma, porque estava saciado de desprezos e humilhações. — «Empregue- me vossa alteza noutras partes e em outros negócios para que eu possa prestar. Os meus desejos são ser- vir-vos de alma e vida ; mas não me retenha TOMO II 8 Íil4 HISTORIA DA INQUISIÇÃO aqui vossa alteza um único dia, que o toma- rei por agravo, e morrerei de paixão». — En- furecia-se com a importância que davam na cúria romana a Duarte da Paz, e, no seu or- gulho de nobre, via uma offensa mortal em lh'o terem dado por competidor, consentindo- Ihe que interviesse numa questão entre prín- cipes. — Mas estes — accrescentava D. Henri- que, alludindo aos cardeais — não são prínci- pes, nem são nada. São mercadores e bofari- nheiros, que não valem três pretos (i) ; homens sem educação, a quem só movem ou o medo ou o interesse temporal, porque o es- piritual cousa é de que não curam.» — Em harmonia com a idéa que concebera acerca da corte pontifícia, também indicava os expe- dientes que D. João iii tinha a adoptar, con- cordando em parte com o arcebispo, mas sem aconselhar o systema de perfídia que o seu collega propunha. Na sua opinião, tinha elrei a escolher entre dous arbítrios : negar de todo a obediência ao papa como Inglaterra (2), ou (1) Reaes pretos: moeda de cobre minda, que en- tão corria. (2) «Desobedecer muy inteiramente ao papa, como Inglaterra» : Carta de D. Henrique de Meneses de 17 de março de 1535, 1. cit. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 115 acceitar a Inquisição do modo que lh'a con- cediam, havendo-se depois com justiça e mo- deração o novo tribunal ; porque, logo que se visse que em Portugal não havia Luceros, e que os inquisidores procediam honestamente, dentro em pouco se obteria tudo. Terminava reiterando as supplicas para que se lhe per- mittisse voltar quanto antes a Portugal (1). Remettidas a D. João iii as minutas das ul- timas resoluções acompanhadas destas car- tas, Paulo III dirigiu-lhe também um breve, no qual, por intervenção do núncio, lhe commu- nicava offlcialmente copia das mesmas reso- luções. Neste breve, redigido por Santiquatro e approvado depois pelo papa (2), alludia-se em summa aos anteriores debates, e observa- va-se que, por maiores que fossem os dese- jos do pontífice de dar satisfação a elrei, to- davia, tractando-se dos bens e da vida de tan- tos individues, a vontade de Deus era que elle se inclinasse antes á misericórdia do que ao rigor ; que, não obstante poderem as con- (1) Ibid. (2) Na copia do breve Inter ccetera, inserta na Symmicta (vol. 31, f. 452 v. e seg.) vem appensoum bilhete do cardeal ao referendário Blosio, (i*onde isto consta. 116 HISTORIA DA INOUISIÇÃO venções e pactos celebrados entre os conver- sos e D. Manuel considerar-se em alguns pontos como contrários ás leis canónicas, im- portando a revogação delles uma quebra da palavra real, cousa que sobre todas devia ser estável, a sancta sé preferira respeitá-la e mantê-la a condescender absolutamente com os desejos delle rei, a quem admoestava para que se contentasse com as modificações pro- postas, únicas compatíveis com a dignidade da coroa portuguesa e com a honra da mesma sé apostólica (1). Como dissemos, não se ignorava em Roma que a bulia de 7 de abril havia sido notificada aos prelados e, portanto, sabía-se bem o va- lor que tinham as alterações feitas na minuta da que devia substitui-la se não estivesse pu- blicada. Era occasião opportuna para um acto de dobrez, e a cúria romana aproveitou-a. Pelo mesmo correio, e porventura juncto com a copia daquella minuta enviada ao nún- cio, escreveu-se a este, avisando-o de que o papa, tendo-se accingido ao parecer dos com- missarios que haviam examinado a qdestão. (1) Breve Inter ccetera de 17 de março de 1535: M. 25 de Bulias N." 30, e G. 2, M. 2, n.« 13, no Arch. Nac. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 117 indeferira as pretensões dos agentes de Por- tugal, e que por isso lhe ordenava desse in- teira execução á bulia de 7 de abril, conside- rando como annullado o breve pelo qual ti- nham sido suspensos os seus effeitos (1). Conforme, porém, acabamos de ver, os com- missarios, e ainda mais o papa, haviam accei- tado modificações importantes áquelia bulia e, posto que os effeitos dessas modificações tivessem de ser nenhuns, o resultado que se attribuia á negociação, e em que se estriba- vam as provisões do breve ao núncio, era supposto (2). As narrativas dos christãos-no- vos explicam-nos esta alteração dos factos e a mutua negação dos dous diplomas que se expediam, ambos com a data de 17 de mar- (1) Breve Dudum postquam de 17 de março de 1535: copia authentica no M. 14 de Bulias, N.» 3. (2) «Cum.. . viri prsedicti.. . litteras absolutionis hujusmodi, per dictum prsedecessorem, ut prseíèr- tur, concessas, executioni debitoe esse demandandas nobis retulerini, nos execuUonem hujusmodi ojn- nino fieri volentes, fraternilati tuee per praesentem commitiimus et mandamus quatenus ad executio- nem dictarum absolutionis Jilterarum/«íí?í(7, ?'//arMm tenorem in omnibos et per omnia procedas, perindè ac si earum executionem per dietas litteras non suspendissemus«. Ibid. 118 HISTORIA DA INQUISIÇÃO ço. Redigidas e entregues aos embaixadores as minutas, chegaram a Roma informações que auctorisavam o pontifice para revogar to- das as concessões feitas aos agentes de Por- tugal. A impaciência do fanatismo subminis- trara novos fundamentos para a cúria romana favorecer os conversos e resistir ás preten- sões de D. João iii. O bispo de Sinigaglia re- mettia instrumentos authenticos de como no- tificara aos prelados a bulia de perdão, e conjunctamente fazia o relatório do que se passara em Portugal desde as primeiras pro- videncias tomadas por Paulo iii na sua acces- são ao pontificado. Além de se haver opposto á publicação da bulia de 7 de abril, o governo português, longe de obedecer ao breve de 26 de novembro, mandando pôr em liberdade os individues presos nos cárceres da Inquisição, procedera ultimamente a novas capturas (1). Irritado com a desobediência, o papa enviou desde logo novas instrucções ao núncio. De- via este exigir d'elrei uma declaração categó- rica sobre a acceitação ou não acceitação das condições impreteriveis com que nas minutas dadas aos embaixadores eile declarava con- (1) Memoriale, Symm., vol. 31, f. 38 v. HlSrORIA DA INQUISIÇÃO 119 ceder a Inquisição. Informado igualmente acerca da injustiça e nullidade jurídica da lei de 14 de junho de 1532, pela qual haviam sido inhibidos os christãos-novos de saírem do rei- no, ordenava ao bispo de Sinigaglia que insis- tisse na revogação dessa lei ou, pelo menos, em que se não renovasse, findo o praso du- rante o qual se mandara vigorar. Com estas instrucções ao núncio expediram- se dous bre- ves, um dirigido a elrei, outro ao cardeal in- fante D. Affonso, em que o papa lhes significava o seu vivo desgosto pelos actos practicados em contravenção das determinações da saneia sé (1). Assim os christãos-novos obtinham neutralisar, até certo ponto, o eífeito moral dessas poucas concessões que a tanto custo haviam obtido os agentes de Portugal. De feito, se o desfecho da negociação devia causar vivo dissabor a D. João iii, esses quei- xumes do papa e o breve em que se orde- nava a inteira e immediata execução da bulia de 7 de abril, ao passo que na mesma data se lhe propunham modificações a ella, haviam forçosamente de levar o seu despeito ao ul- timo auge. Dado o caracter imperioso de (1) Ibid. f. 39. 120 HISTORIA DA INQUISIÇÃO Paulo III, quaesquer manifestações de irrita- ção da parte da corte portuguesa trariam maiores embaraços ás ulteriores pretensões, e, retardada assim a epocha de um accordo definitivo, ganhariam tempo os conversos para se melhorarem na lucta. Não se descuidavam elles. Provavelmente por insinuações de Duarte da Paz, tão conhecedor dos hábitos e idéas da cúria romana, os chefes da raça hebréa em Portugal redigiram nos fins de abril, de ac- cordo com o núncio Sinigaglia (1), um singu- lar documento. Era uma obrigação em que se compromettiam a dar ao papa trinta mil du- cados, se elle conviesse em acceder ás pro- postas que annexavam ao contracto. Esta somma, porém, diminuiria, dadas diversas hy- potheses (2). Eram as principaes condições, que fosse absolutamente supprimido o tribu- nal da fé como instituição independente, fi- (1) Conlessa-o o próprio núncio na carta de um de março de 1536 que se acha na Symmicta, vol. 2, f. 2.32, e que adiante havemos de citar, «fariano quanto se erano per scritto meço oblir/ati.y> (2) Os capitules e a obrigação assignada pelos dous chefes da gente hebréa, Tliomé Serrão e Ma- nuel Mendes, acham-se transcriptos do códice do Vaticano N.» 966 na Symmicta, vol. 29, f. 67, e vol. 46, i'. 449. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 121 cando o conhecimento das culpas de judaísmo pertencendo aos bispos ; que se decretasse para taes culpas o processo ordinário dos delidos civis ; que se não acceitasse a que- rela passados vinte dias depois de perpetrado o crime ; que não houvesse confiscos ; que podessem os réus dar os juizes por suspei- tos ; que lhes fosse licito escolher por advo- gados ou procuradores quem quizessem ; que se lhes communicasse a matéria da accusa- ção ; que não se instruíssem previamente as testemunhas sobre os actos que podiam ser taxados de heréticos ou não, mas pura e sim- plesmente se lhes exigisse a declaração exacta do que haviam presenciado ou ouvido ; que não se admittisse o testemunho de escravos e gente vil, nem o dos co-réus, nem de indi- víduos culpados ou já sentenciados pelo mes- mo crime ; que se publicassem os nomes dos delatores ; que houvesse appelação para Ro- ma das sentenças definitivas ou que tivessem força de definitivas ; que não se intentassem processos contra pessoas fallecidas; que se estabelecesse como doutrina de direito com- mum a liberdade para os conversos de saírem do reino com todos os seus bens. Na hypo- these de não querer o papa denegar inteira- mente a Inquisição, mas adiando a questão 122 HISTORIA DA INQUISIÇÃO do seu estabelecimento para ser ventilada no futuro concilio (de cuja convocação se tractava naquella conjunctura) ou no tribunal da Rota, lhe dariam desde logo dez mil escudos e os outros vinte mil depois, no caso de uma re- solução conciliar conforme com as condições propostas. Suppondo, porém, que no concilio se resolvesse o contrario, dariam outros dez mil escudos, mandando o pontífice expedir a bulia com as limitações que propunham. Fi- nalmente, se Paulo III quizesse por si conce- der a Inquisição com as condições relativas á forma do processo, e ficando os culpados exemplos por doze annos dos confiscos, e, depois disso, dependendo estes da approva- ção pontifícia, uma dadiva de quinze mil es- cudos seria a prova da gratidão dos conver- sos (1). Emquanto se faziam estes vergonhosos con- tractos, as ultimas communicações vindas de Roma produziam em Portugal os effeitos que eram de esperar. Se por uma parte o núncio, em virtude do breve de 3 de novembro de 1534, intimara, como vimos, os prelados dio- cesanos para que suspendessem qualquer fl)Ibid. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 123 procedimento relativo á bulia de 7 de abril, por outra parte, quando fizera a intimação já havia dado toda a possivel publicidade áquelle diploma para ser executado conforme os de- sejos do moribundo Clemente vii. Accrescia agora a intelligencia lata que se attribuia á condição de estar publicado o perdão, facto que no sentir da cúria se devia reputar exis- tente, se daquella bulia se houvesse dado conhecimento aos ordinários. Supposto o an- tagonismo que se estabelecera entre elrei e o bispo de Sinigaglia, estas circumstancias, até certo ponto contradictorias, prestavam-se a mil subtilezas diplomáticas com que o go- verno podia sustentar por algum tempo a oppressão contra a raça hebréa, adiando de dia para dia o cumprimento da bulia de per- dão. De feito, o governo português parece ter obstado ás diligencias do núncio para cum- prir as ultimas instrucções que recebera, es- tribando-se principalmente nas intimações fei- tas aos prelados diocesanos em consequência do breve de 3 de novembro (1) (1) Que foi sobre estas intimações, que se estribou a opposição do governo conliece-se da carta de D. Martinlio de 13 de setembro de 1535, ibid • «A copia do alvará do núncio (é o que se ar^hR no Cjotoo 124 HISTORIA DA INQUISIÇÃO No meio das dilações que forçosamente nasciam das contendas com o bispo de Sini- gaglia, D, João iii fazia examinar attentaraente as propostas definitivas da corte de Roma. A's pessoas escolhidas para esta grave com- missão propunham-se diversas hypotheses : se conviria acceitar a Inquisição com as mo- dificações novamente impostas, ou se porven- tura seria preferivel deixar provisoriamente a cargo dos ordinários o perseguir os delictos contra a religião, procedendo-se entretanto nas negociações com o papa de um modo mais enérgico, e até que ponto seria conve- niente levar a severidade : se, no caso de não se acceitarem as propostas da cúria, ou de se mostrar frouxa a auctoridaHe episcopal, o poder civil tinha o dever ou o direito de a substituir nessa parte : se, finalmente, dada a rejeição de todos aquelles arbitrios, conviria expulsar do reino os christàos-novos, ou uni- Chronol., P. 1 , M. 54, N." 2) por que notificou aos prelados que não pobricassem a bulia do perdam não veo cá: ha mister que venha; e assinado pelo núncio, senão não lhe darão cá fee, e elle, segundo he, negá-lo-ha.» E' o que lambem resulta do docu- mento da G. 2, M. 1, N" 29, do Arch. Nac, que adiante havemos de aproveitar. HISTOKIA IJA INQUISIÇÃO 125 camente aquelles que á força de dinheiro im- pediam o estabelecimento da Inquisição, tam- bém necessária para manter os christãos- velhos (1). Estas consultas indicam que os fautores da intolerância, embora dessem mos- tras externas de energia, trepidavam diante dos obstáculos que lhes oppunha a perseve- rança da raça hebréa em defender as vidas, fazenda e liberdade. Chegou-se a termos de convidar elrei os indivíduos mais influentes entre os conversos para lhe proporem as con- dições com que se poderia pedir a Inquisição. de modo que cessassem as resistências em Roma (2). A' vista da exposição que lhe fize- ram, prometteu-lhes mandar ordem aos em- baixadores para admittirem na bulia da In- quisição três das condições mais importantes que em seus capítulos apontavam, e que até certo ponto condiziam com as que o papa impunha na minuta remetLida a elrei. Eram ellas que os confiscos ficariam suspensos por dez annos; que durante o mesmo praso se communicariam aos réus os nomes dos accu- (1) «Parece que elles impeaem a Inquisição com o seu dinheiro»: Apontamentos na G. 2, M. 1,N."36, no Arch. Nac. (2j Ibid. 126 HISTORIA DA INQUISIÇÃO sadores e das testemunhas adversas, quando esses réus não fossem pessoas poderosas ; que, emfim, pelos dictos dez annos se conce- deriam aos processados, confessando-se elles incursos em todos os crimes que lhe tivessem sido attribuidos, o direito de pedirem recon- ciliação, ainda depois de sentenciados, evi- tando assim o horrível supplicio das cham- mas. Com taes concessões, não haveria razão para os conversos abandonarem Portugal (1). Mas, se o efeito moral produzido pelas com- municações de Roma fizera pensar no primei- ro momento em recorrer a promessas de in- dulgência para obstar a uma emigração fatal para o paiz, pouco tardou a reacção do arre- pendimento. Havia meio mais efficaz e mais conforme com a politica intolerante daquella epocha para reter os hebreus. Era a renova- ção por um novo período de três annos da lei de 14 de junho de 1532. Adoptou-se o ar- bítrio (2). Aquella lei era uma das tyrannias que mais impressão tinham feito na cúria ro- mana e que mais suspeitas tornavam as in- tenções d'elrei. O rigor com que nella se pro- (1) Ibid (2) Lei de 14 de junho de 1535, em Leão, L. Extr (1566), f. 292.— Figueiredo, Synopse, T I, pag. 355 HISTORIA DA INQUISIÇÃO 127 curava obstar á saída dos conversos e, sobre- tudo, á dos seus bens, parecia justificar as accusações de desenfreiada cubica que tantos criam descortinar debaixo do excesso de zelo religioso. Sendo a abrogação delia um dos pontos em que com mais instancia a corte de Roma insistira, o revalidá-la era lançar a luva ao pontifice. Marco delia Ruvere, cujas hosti- lidades com D. João III, posto que veladas de- baixo das formulas cortezans, eram cada vez mais violentas, e que não cessava de pintar para Roma com sombrias cores o que se passava em Portugal (1), devia aproveitar ha- bilmente este facto offensivo para exacerbar o animo de Paulo iii. Assim, o pontifice não tardou em responder alei de 14 de junho com um breve, cujas disposições indirectamente a annuUavam e contradiziam os seus fundamen- tas. Neste breve tractavam-se as accusações de judaísmo feitas contra os conversos como inventos dos seus inimigos (2), que, além de (1) Memoriale: Symm., vol. 31, f. 39 e seg (2) «cúm... tanquam christiani. vtxennt, tamen eorum emuli aliquos ex eis tanquam judaizantes. . . accusent, aut deferanl, seu alias molestent»: Breve Cúm sicut 20 jul. 1535, na Symm., vol. 31, í 455 v. e vol. 32, f. 114 e no Collectono das Bulias do San- clo-Officio, f. 37. 128 HISTORIA DA INQUISIÇÃO fazerem processar os accusados, lhes perse- guiam os pães, filhos e parentes e, até, os seus advogados, pondo-lhes a nota de fauto- res de herejes, o que importava para estes, conforme o direito canónico, a participação no crime com identidade de penas. A este abuso occorria o papa auctorisando todas as pessoas, sem distincção de classe ou jerar- chia, para defenderem e advogarem as causas dos réus dejudaismo em quaesquer tribunaes e instancias, não só dentro do reino, mas tam- bém na cúria romana, indo lá seguir as ap- pelações, sem que a ninguém fosse licito, com pretexto algum, persegui-los por cumplicida- de ou obstar lhes a saída de Portugal, sob pena d'excommunhão (1). Assim, suppondo que o breve tivesse execução, ficaria fácil a qualquer converso exercer o officio de procu- rador ou de advogado de algum preso, saindo do reino com esse fundamento. Até que pon- to o despeito ou a obrigação assignada pelos chefes dos hebreus portugueses, Thomé Ser- rão e Manuel Mendes, tinham influido na ex- pedição deste diploma não podemos dizê-lo. O que é certo é que a liberdade de nomeia- rem os réus quem quizessem por seus advo- (1) Ibib. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 129 gados ou procuradores, e o direito de saírem do reino quando lhes aprouvesse figuravam, como vimos, entre as principaes condições do proposto contracto. Em virtude das intrucções que recebera, o bispo de Sinigaglia, ao passo que forcejava para fazer cumprir as disposições da bulia de 7 de abril e publicava as providencias ultima- mente tomadas pelo pontífice, exigira uma so- lução categórica sobre a acceitação ou não acceitação das bases offerecidas para a nova bulia da Inquisição. A's suas soUicitações, tan- to antes como depois da prorogação da lei de 14 de junho, não se deu, porém, resposta alguma (1). Tinha-se adoptado, emfim, o arbí- trio de tentar ainda uma vez os esforços di- plomáticos, apesar do desengano dado, não só por D. Martinho, em quem pouco funda- mento se podia fazer, mas também por D. Henrique e pelo cardeal Pucci, de que todas as ulteriores tentativas seriam inúteis. Escre- veu-se aos embaixadores, ordenando-se-lhes que de novo exigissem de Paulo iii a remo- ção de Marco delia Ruvere, cuja residência em Portugal era inútil para a sé apostólica e damnosa ao paiz pelas perturbações que sus- (1) Memoriale, 1. cit. TOMO II í30 HISTORIA DA INQUISIÇÃO citava, e que se o papa não despachasse prom- piamente aquella justa supplica, lhe apresen- tassem os capítulos de queixa contra o seu representante que se lhes remettiam e em que se expunham os desconcertos por elle practi- cados. Recommendava- se-lhes que por todos os modos obtivessem promptamente uma re- solução favorável, enviando por expresso as ordens para a saída do núncio (1). Rejeitando as minutas das novas bulias de perdão e da Inquisição, o governo português subministra- va aos seus agentes pretextos especiosos pa- ra se protrahirem indefinidamente os debates. Como nas minutas se dizia que os hebeus portugueses tinham sollicitado perdão, come- çava-se por negar que elles o quizessem ou sollicitassem, e que para o obter tivessem da- do procuração a Duarte da Paz, convindo-se em que, se alguns disso o tinham encarrega- do, a esses se concedesse absolvição, confes- sando individualmente cada um delles os seus erros. Nesta parte, as instrucções referiam-se evidentemente aos chefes da gente hebréa, que corriam com as negociações em Roma e (1) Minuta da carta a D. Martinho, na G. 2, M. 2, N.o 21.— Os capítulos contra Sinigaglia acham-se na G. 13, M. 8, N.° 12, no Arch Nac. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 131 que o próprio D. João iii reconhecera como órgãos e representantes dos outros conversos, mandando-os ouvir como taes na questão que se ventilava. Era o cúmulo da impudência; porém não se parava ahi. Não podendo já re- cusar a authenticidade dos privilégios de D. Manuel, os fautores da intolerância preten- diam que essas amplas garantias, a que cha- mavam alguns favores, embora fossem plau- síveis nos primeiros tempos de conversão, ti- nham caducado com o decurso dos annos, visto que depois os conversos peccavam, não por ignorância, mas por malicia. Ponderava- se largamente que o perdão não devia ser ha- vido por publicado, nem commettida a execu- ção delle ao núncio. Combatia-se a substitui- ção feita na minuta enviada pelos embaixado- res, por ser ainda mais favorável aos conver- sos do que o era a bulia de 7 de abril, con- cedendo-se agora aos réus, sem exceptuar os condemnados como relapsos, maior somma de garantias e abrindo-se caminho á interven- ção mais ampla dos prelados nas causas do judaismo. Observava-se que, pelo que toca aos suspeitos, a minuta ia muitíssimo além das concessões de Clemente vii, e que, quanto aos reconciliados, substituía as penitencias, que se lhes deviam impor, por uma commu- 132 HISTORIA DA INQUISIÇÃO tacão em obras pias secretas. Finalmente, en- tendia elrei que, a conceder-se o perdão na- quella forma, seria melhor revogar-se este como proposera Clemente vii, embora tam- bém se acabasse com a Inquisição, devolven- do-se o conhecimento das causas em matéria de fé aos bispos, conforme o direito commum. Preferia-se a suppressão absoluta do novo tribunal, não só porque o perdão concedido do modo proposto quasi o inutilisava, mas igualmente porque, estabelecendo-se durante sete annos para os delictos religiosos o pro- cesso ordinário dos crimes civis, com um grande numero de appelações e recursos, e ordenando-se que se publicassem os nomes dos delatores e testemunhas, se assegurava por esse meio a impunidade dos delinquentes. Taes eram os pontos essenciaes que D. João iii submettia á consideração do papa (1). Remet- tendo-se estas instrucções aos embaixadores, ordenava-se em especial a D. Martinho que, insistindo por todos os modos na matéria del- ias, certificasse, todavia, o pontifice da obe- diência d'elrei no caso de elle não ceder, mas que a responsabilidade de quaesquer conse- (1) Instrucção aos embaixadores em Roma, na G. 2, M. 1 , N.° 29 HISTORIA DA INQUISIÇÃO 133 quencias que dahi provissem ficaria pesando sobre a cúria romana. Recommendava-se-Iiies também que, no caso de se obter alguma cou- sa favorável, se expedissem os necessários despachos para Portugal; mas que procuras- sem protrahir as negociações por três mezes mais, com dissimulação tal, que não se des- confiasse disso. Esta ordem, sobre que se mandava guardar rigoroso segredo, nem se- quer devia ser conhecida de Santiquatro, a quem também se escrevia sobre o assumpto. A's instantes sollicitações de D. Henrique para sair de Roma respondia elrei com a promes- sa de que no fim de três mezes, tempo suffi- ciente para se obter do papa uma resolução definitiva, se lhe daria por acabada a missão e ficaria livre para voltar á pátria (1) Se o rei de Portugal, desejando, como vi- mos, resistir por todos os meios a que se realisassem as esperanças de perdão quanto ao passado e de garantia quanto ao futuro, que os seus súbditos hebreus haviam conce- bido, fingia ter o firme propósito de obedecer a final á vontade do pontifice expressamente (1) Minuta da carta a D. Martinho, na G. 2, M. 2. N.° 22, e minuta da carta a D. Henrique, ibid.. N.o 38. 134 HISTORIA DA INQUISIÇÃO manifestada, a cúria romana, resolvida tam- bém a satisfazer até onde fosse possivel os postulados junctos ao contracto simoniaco que os conversos lhe haviam offerecido por intervenção dos seus chefes, nem por isso, segundo parece, deixava de proceder de modo que parecesse querer vir a accordo com a corte de Portugal. Restam vestigios de uma carta de Paulo iii, provavelmente dirigida nesta epocha ao bispo de Sinigaglia, em que o pontífice reduzia a termos simples as der- radeiras condições que propunha para uma transacção definitiva. Era a primeira cessarem os confiscos e proceder-se nos crimes de heresia como nos de homicídio e semelhan- tes. Não se acceitando esta, propunha conce- der a Inquisição na forma que eirei queria, mas dando-se aos réus o direito de appelarem para o núncio. Se estes dous arbítrios, que o papa communicara aos embaixadores e que haviam sido rejeitados por elles, o fossem também por elrei, offerecia-se uma terceira solução, a qual os embaixadores declara- vam seria acceila pela sua corte. Vinha a ser conceder-se um perdão geral e absoluto a todos os conversos, tanto soltos como presos, dando-se-lhes o espaço de um anno para saí- rem do reino, e estabelecendo-se depois a In- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 135 quisição com todas as clausulas que se qui- zessem. O papa declarava que deixaria a elrei a opção entre qualquer dos três arbí- trios, mas que cumpria acceitar forçosamente um delles (1). Estas propostas iam até certo ponto de accordo com os conselhos de um portuguez que vivia em Roma, addicto á familia Far- nese, e que, segundo parece, conservava rela- ções e influencia com os ministros de D. João III e igualmente com os chefes da raça hebréa. Acaso era aquele mesmo Diogo Ro- drigues Pinto cuja presença nos debates acerca da Inquisição repugnara a D. Henri- que de Meneses nas primeiras conferencias que tivera com Paulo iii (2). Fosse quem fos- se, é certo que esse individuo aconselhara o papa a proceder assim, augurando-lhe feliz (1) Extractos, para elrei ver, de cartas do papa, escriptas em agosto, sem dizer de que anno, na G. 2, M. 1, N.o 25. Pela matéria destes extractos pare- ce-nos que não se lhes pôde altribuir senão a data de 1535. (2) V. ante p. 79. O documento que vamos citar é evidentemente redigido por um converso que tinha em Roma filhos e mulher, e que, portanto, não po- dia ser Duarte da Paz, cuja famiha ficara em Por- tugal, segundo se coitie de documentos posteriores. 136 HISTORIA DA INQUISIÇÃO resultado. Ouvido sobre a matéria, insinuara a expedição dos últimos breves enviados a Portugal para a execução da bulia de 7 de abril e para que a livre acção dos advogados e procuradores dos réus de judaísmo fosse respeitada e protegida. Na sua opinião, a ne- gativa absoluta de conceder o tribunal da fé não era possível sem quebra da lealdade da sé apostólica, mas cumpria attender ás cir- cumstancias que tornavam necessário impe- dir que a Inquisição se convertesse em ins- trumento da mais brutal tyrannia. Estas cir- cumstancias eram, não só a violência da con- versão primitiva, mas também as consequên- cias que, reconhecido esse facto,d'ahi derivavam, taes como a de se declararem judeus forçados ao baptismo todos os conversos perseguidos, visto que, segundo as doutrinas canónicas, nada teria com elles neste caso a Inquisição, e o direito de saírem do reino para irem viver noutra parte como sectários da lei de Moysés. Isto equivalia a obrigá-los a fugirem, abandonando para sempre a religião christan, o que muitos já teriam feito, se não fossem as rogativas e promessas do bispo de Sini- gaglia. Entendia que convinha também at- tender-se á tendência dos portugueses para jurarem falso, facto que se provava com a HISTORIA DA INQUISIÇÃO 137 própria legislação do paiz, a ter Clemente vii revogado a Inquisição depois de a haver con- cedido, ás recommendações deixadas por elle ao seu successor para que amparasse esta misera gente, ás dadivas feitas pelos conver- sos á sacta sé (1), e emfim ao estado deplo- rável de oppressão em que viviam os hebreus portugueses ; tudo razões para se excogita- rem com prudência e actividade os meios de conciliar as promessas feitas a elrei com a justiça devida ás victimas. Entre esses meios, apontavam-se como principaes o não acceita- rem a proposta para inquisidor geral do bispo de Lamego, em substituição de Fr. Diogo da Silva, homem de virtude e bondoso, rico e sem filhos, caso em que o bispo de nenhum modo estava (2). Seguindo-se na organisação do tribunal as resoluções tomadas por Simo- netta e Ghinucci depois dos debates com os embaixadores, adoptando-se para os delictos (1) «et attento il servizio che ha fatto alia sedia apostólica-: Anonymi Porlugallensis, Instruzione, etc. Códice Vatic. G792, na Symmicta, vol. 2, f. 278 (2) «nostro signore non può donare excusatione a Dio nessuna cavare d'inquisitione un buono e perfeito huomo, monacho riccho senza flgliolo, per mettere un pegio in ogni conto» : Anonymi Portu- gall. Instruzione, etc, 1. cit. 138 HISTORIA DA INQUISIÇÃO contra a fé o systema de processo usado nos tribunaes seculares para os crimes de morte, não com limitação de tempo, mas perpetua- mente, e affiançando-se aos christãos- novos a liberdade de saírem do reino, comprommetia- se elle a fazer com que estes ficassem satis- feitos, dando integralmente a somma offere- cida no contracto proposto pelos seus chefes com mais graves condições do que estas (1), obrigando-se elle ao mesmo tempo a alcan- çar que elrei acceitasse ou, pelo menos, não opposesse resistência á deliberação do ponti- fice. Assegurava, além disso, que, obtidas taes concessões, os hebreus portugueses con- viriam em não passar á Turquia, para ahi se- guirem a religião judaica. Animando-se o núncio com mostras de benevolência, e mos- trando-se actividade e bons desejos, o auctor destes diversos arbítrios não reputava impos- sivel obter dos conversos uma dadiva mais avultada do que a anteriormente promet- tida (2). A' vista desta perspectiva, não deve admi- rar que os christãos-novos alcançassem de- (1) «et facia tutto quello sercisio, che per ogni cosa che demandava volea fare»: Ibid. (2) «et forse fare piu grande servizioT>: Ibid. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 139 cisivas vantagens ; mas davam-se, além disso, outras circumstancias que conspiravam para o seu triumpho. a não accei tacão das propos- tas de Roma pela corte de Portugal, posto que indirecta era clara e indubitável. Ao passo que se recusava uma resposta official, guardando-se obstinado silencio para com Si- nigaglia, vemos que se enviavam aos embai- xadores novas instrucções para renovarem uma contenda diplomática já terminada, e debatida até á saciedade. Por outra parte, a irritação do fanatismo e da hypocrisia mani- festava-se em rugidos de cólera, que soavam até do alto do púlpito, com approvação do infante cardeal D. Affonso. Nestas prédicas nem sequer era respeitada a sé apostólica ; e as communicações do núncio, nas quaes por- ventura se exaggeravam esses protestos au- dazes da intolerância, vinham exacerbar o despeito do papa contra o apparente despre- zo da corte portuguesa para com elle, e cu- brir com o manto da dignidade offendida as corrupções e simonias da cúria (1). Para (1"^ «tão indignado o papa está delle e do seu rei- no, e isto entendo he pola pregação de mestre Af- fonso o n\inc\o, que assoprou sempre estes foles canto pôde... o cardeal vosso irrafin, qne também 140 HISTORIA DA INQUISIÇÃO cúmulo de embaraços, quando as novas ins- trucções dos embaixadores chegaram a Roma nos princípios de setembro, o papa havia par- tido para Perugia, aonde o chamavam negó- cios politicos, e d'onde só devia voltar em outubro. Assim, a demora de três mezes em vir a uma conclusão final, demora que se re- commendava de Lisboa, seria ainda mais longa, tendo de passar um mez antes de se entabolarem novos debates. Mas que intuito havia em tal recommendação ? Elrei não con- fiara o seu segredo de D. IMartinho. Prova- velmente era por que se tractava, conforme os factos posteriores o estão indicando, de salvar uma situação quasi desesperada, fa- zendo intervir nella de modo decisivo a ir- resistível influencia de Carlos v. Achava-se este em Sicilia, aonde chegara depois da con- quista de Tunes, na qual se distinguira o infante D. Luiz, irmão de D. João iii. De Si- cilia devia vir a Nápoles, e dahi a Roma, para resolver com Paulo iii os graves as- sumptos religiosos e politicos que entãc agi- o mettem na culpa da pregação de mestre Affbn- so»: C. de D. Henrique de Meneses a eirei ae i de novembro de 1535, na G. 20, M. 7, o.» 23, ao Arch. Nac. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 1-41 tavam a Europa (1). Deram-se instrucções a Álvaro Mendes de Vasconcellos, o qual acom- panhava o imperador como representante da corte portuguesa (2). Os serviços que a ar- mada de Portugal fizera na empreza de Afri- ca e a estreita amizade que Carlos v con- trahira com o infante D. Luiz eram, além dos instantes rogos de D. João jii, motivos pode- rosos para impellirem o imperador a entrar seriamente nesta questão. Os factos tinham provado que, a não ser a intervenção do mo- narcha hespanhol, nenhum expediente havia seguro para vencer na contenda, e quanta razão tinha D. Henrique de Meneses quando, no principio da sua embaixada, inculcava a efficacia daquelle meio, que o seu astucioso collega fingia considerar como inconveniente. Mas emquanto se preparava o novo terreno para o combate, o negocio seguia cada vez mais rapidamente o pendor que havia tomado. (1) Pallavicino, Istor. dei Concil. di Trento, L. 3, c. 19.— Carta de D. Martinho de 13 de setembro de 1535, na G. 2, M. 2, N.° 50, (â) £' o que se deduz da carta de Álvaro Mendes de 27 de dezembro de 1536 (aliás 1535, porque o aniio 86 começava então a contar no dia de natal), na G. 2, M. 5, N.° 53. C. de D. Martinho de 13 de se- tembro de 1535, 1. cit. i42 HISTOHÍA DA INQUISIÇÃO Foi nos princípios de setembro que o arce- bispo do Funchal e D. Henrique de Meneses receberam as ultimas instrucções de que ante- riormente falámos. Era tarde. Simonetta, ele- vado ao cardinalato, governava Roma na au- sência do papa, e este mostrava-se tão per- suadido da justiça das suas ultimas resoluções que afíirmava merecer por isso a apotheose (1). Do cardeal Simonetta, homem de princípios severos, e que havia tractado longamente o negocio dos christãos-novos, nada havia, por- tanto, que esperar, e ambos os embaixadores eram concordes em reputar Paulo iii como inteiramente adverso ás pretensões d'elrei. D. Henrique, especialmente, pintava com som- brias cores a irritação do pontífice e a male- volencia de Simonetta e de Ghinucci, também feito agora cardeal, contra tudo o que dizia respeito ao governo português (2). Entretanto, D. Martinho mostrava nesta conjunctura a as- ({} Carta de D, Martinlio, cit.: «e crê (o pa^s) peio que tem feito nisto que merece canonisar»íar- no.» (2) Como D. Martinho, D. Henrique escrevew ass 13 de setembro de 1535 a eirei. Esta carta não a po- demos encontrar; mas refere-se a ella, resumindo-^, o mesmo D. Henrique na de 1 de novembro deefe? anno, que se acha na G. 20, M. 7, N.° 23. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 143 tucia de que era dotado. Ou fosse que seu ir- mão o houvesse avisado de que na corte pre- valecia a idéa de recorrer a Carlos v, ou fosse que as suas conveniências particulares o in- duzissem a obstar ao triumpho completo da causa dos hebreu, é certo que, esquecendo as repugnancias passadas, apontava como único remédio heróico para a gravidade do mal a intervenção do imperador, indicando o con- juncto de circumstancias politicas que torna- vam provável os bons effeitos de semelhante intervenção. Insistia, comtudo, em que seria judicioso acceitar a Inquisição com quaesquer modiricações, esperando-se com paciência as concessões futuras. Por fim, aconselhava que se removesse o mais duro contrario com que havia a luctar em Roma, isto é, Duarte da Paz. Pedia o prelado que ou elrei procurasse attrani-ío a si por qualquer modo, perdoando- Ihe os passados desserviços, ou que o man- dasse assassinar; porque tinha sabido obter o favor, não só da cúria, mas também de to dae as pessoas influentes de Roma. Ponde- rava que, na verdade, durante essas discus- sões sobre a Inquisição, em que sempre o papa o mandava ouvir, poderiam os agentes portugueses travar- se de razões com elle e matá-lo; mas que nunca se practicaria tal 144 HISTORIA DA INQUISIÇÃO acto senão por ordem d'elrei, em cujo damno redundaria o crime, além da deshonra, dos remorsos e dos riscos que d'ahi tiaviam de resultar. Na remoção de Duarte da Paz, por qualquer modo que fosse, consistia, na opi- nião do metropolita, o principal meio de es- palhar o terror e o desalento nas fileiras ini- migas (1). Aconselhando o assassinio de um homem com quem tinha estreitas, posto que occultas relações, o arcebispo cria, provavel- mente, aífastar de si as suspeitas de uma cri- minosa convivência com os christãos-novos, e mostrando-se convencido da necessidade de recorrer á poderosa protecção do imperador d'Allemanha, não só lisongeiava as intenções da corte, mas também inculcava pelo estabí"- lecimento definitivo da Inquisição um zelo que não tinha. Por outro lado, havendo o pai >& voltado a Roma nos principios de outubro, o* (1) «ou V. A. o mande botar (Duarte da Paa^' neste Tibre, ou o mande hir com algua cor, e pe>- doelhe.. .»— «Que se ha de fazer? Replicar-lhe? Desputaremos: e se dixer palavra descortês, msr talo. Isto não fará ninguém, se ho V. A. não mandar; porque é vosso desserviço, desonra, conciencia, e risco. Atalhar a tudo fará muito fruto, e os mesmo^ cristãos-novos desesperarão». C. de D. Martratt cit. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 145 arcebispo persuadiu o seu collega de que não convinha usar por emquanto das ultimas ins- trucções enviadas de Portugal, nas quaes, se- gundo depois affirmava o cardeal Santiqua- tro, havia concessões e propostas que torna- riam possivel o vir o pontifice a um accordo favorável (1). Porventura, contava com que a demora de três mezes, que secretamente se lhe recommendara posesse na conclusão do negocio, suppondo que o pontifice accedesse ás novas supplicas, lhe serviria de desculpa da demora, ao passo que na realidade desser- via a causa em que estava offlcialmente em- penhado. Quanto mais Santiquatro assegu- rasse a prompta acquiescencia de Paulo iii ás novas instrucções, melhor se defenderia, depois, de ter retardado a epocha de commu- nicar a matéria delias. Assim, fingindo o ex- cesso de zelo na sua correspondência com elrei, mostraria, por outro lado, obediência cega ás ordens secretas que recebera. Este procedimento era tanto mais torpe quanto é certo que estava imminente uma im- portante peripécia daquelle variado drama. Ir- (1) Carta de Santiquatro a D. João iii de 16 de de- zembro de 1535, na G. 20. M. 7, N.* 1, no Arch. Nac. TOMO ti 10 146 HISTORIA DA INQUISIÇÃO ritado com as tergiversações e com as resis- tências da corte portuguesa, moderadas nas formulas, mas ousadas e tenazes na substan- cia, o pontifice tomara, emfim, uma resolução decisiva a favor dos christãos-novos, resolução que, revalidando em geral as providencias de 7 de abril de 1533, equivalia, ao mesmo tem- po, á condem nação, mais ou menos explicita, dos actos do rei de Portugal em relação aos seus súbditos de raça hebréa. Com a data de 12 de outubro redigiu-se, de feito, uma bulia íl), onde, recordando as principaes disposições da de 7 de abril, e compendiando a historia das resistências á sua execução e da condescen- dência que mostrara em attender a todas as objecções da corte portuguesa, o pontifice punha em novo vigor as provisões de Cle- mente VII, com as modificações que o de- curso do tempo aconselhava e que, sobretudo, a resolução que tomara de revocar o bispo de Sinigaglia, nomeiado executor da bulia de 7 de abril, tornava indispensáveis. Assim, em lo- gar das formulas estabelecidas anteriormente (1) Bulia Illius vices, na Symmicta, vol. 31, f. 463 v., no Colleclorio das Bulias do Sancto-Offlcio, f 42, e na Collecção de Cherubini, T. 1, Bulia 8, citada na Verdade Elucid. Num. 55G et alib. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 147 para os christãos-novos obterem o beneficio do perdão, estatuia-se agora um methodo di- verso. A simples confissão auricular e a ab- solvição de quaesquer sacerdotes escolhidos pelos culpados pô-los-hiam ao abrigo de ulte- riores perseguições, sem que lhes fosse ne- cessário sujeitarem-se a penitencia alguma publica, entendendo-se estar para esse eífeito em pleno vigor a bulia de 7 de abril, e appli- cando-se as disposições da actual a todos os réus ou suspeitos a que ess'outra se referia. Deviam cessar todos os processos por crime de heresia, tanto no foro secular como no ec- clesiastico, soltando-se os presos, revocando- se os desterrados, íacultando-se a entrada na pátria aos foragidos e suspendendo-se os con- fiscos. O papa fulminava os raios da igreja contra os que se opposessem á execução dos seus mandados, e derogava todas as disposi- ções de direito canónico, constituições civis e privilégios apostólicos contrários á nova bulia. Quanto aos réus processados e julgados pela Inquisição, obrigava-os á abjuração perante qualquer ecclesiastico, escolhido por elles, mas eximia-os da penitencia publica, e ordenava que fossem restituidos á liberdade (1). (1) Ibid. 148 HISTORIA DA INQUISIÇÃO Apesar da firmeza e decisão que translu- ziam nas provisões da bulia de 12 de outu- bro, o papa, segundo parece, hesitava ainda em promulgá-la. A acquiescencia de D. Mar- tinho veio aplanar as ultimas difficuldades. A occultas de D. Henrique e do cardeal Santi- quatro, o arcebispo instou com o pontífice para que mandasse publicar o perdão em Portugal, porque, conforme asseverava, seria isso o único meio de terminar as tediosas contendas entre a corte e a cúria romana (1). Assim, as duvidas cessaram, e a bulia, antes de se expedir para Portugal, foi solemnemente affixada, a 2 de novembro de 1535, nos loga- res públicos de Roma por ordem de Paulo iii, habilitado assim para justificar o seu modo de proceder com o voto do próprio arcebispo do Funchal (2). Como, porém, se arriscava o astuto prelado a subministrar ao papa um meio de justifica- ção que serviria ao mesmo tempo de prova fortíssima, posto que indirecta, das occultas (1) Carta de Santiquatro a D. João m de 16 de de- zembro, 1. cit. (2) Ibid. A acta da publicação da bulia a 2 de ao- vembro em Roma, acha-se juncta ao transumpto da mesma bulia, no voi. 31 da Symmicta. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 149 relações delle com os christãos-novos ? Era que D. Martinho acreditava ter, emfim, locado a meta dos seus ambiciosos desígnios. Antes da partida de Paulo iii para Perugia, durante a sua residência alli, e depois de voltar a Ro- ma, o arcebispo trabalhara activamente para obter emfim a realisação das promessas de Clemente vii, a concessão da purpura cardi- nalicia, e suppunha ter conduzido as cousas a termos taes, que o resultado não podia ser duvidoso. D. Henrique de Meneses, que lhe observava os passos, recebera frequentes avi- sos, não só acerca dos seus meneios com Duarte da Paz, mas também sobre os esfor- ços que fazia para alcançar o cardinalato. Além de advertir directa e indirectamente elrei do que se tramava, estando ainda o papa em Perugia escrevera a Santiquatro para que vi- giasse alli o progresso das pretensões do ar- cebispo e lhe obstasse, evitando o dissabor que daria a elrei ver um súbdito hombreiar em jerarchia com seu próprio irmão, o infante cardeal D. Affonso. Na volta de Paulo iii a Roma, D. Henrique, nas primeiras vistas que teve com Santiquatro, exigiu delle uma decla- ração franca e precisa acerca do que se pas- sara sobre aquella matéria. Trazido a um campo em que não eram possíveis subterfu- 150 HISTORIA DA INQUISIÇÃO gios, Pucci, que parece não ia longe de favo- recer a pretensão de D. Martinho, confessou tudo. O negocio estava muito adiantado. Re- presentou-Ihe D. Henrique o desgosto que tal successo devia produzir no animo do prínci- pe, cujo protector na cúria o cardeal era, e convenceu-o de que a sua situação lhe impu- nha o dever de obstar ás miras do arcebispo. Posto que achasse difflcil o empenho, Santi- quatro comprometteu-se a trabalhar contra as pretensões de D. Martinho. Accordes neste ponto, ambos escreveram a D. João iii, sendo desde logo vertida em português por D. Hen- rique de Meneses a carta em que o cardeal narrava as intrigas do prelado. Assim tradu- zida, não seria elrei constrangido a confiar de interpretes o seu conteúdo. D. Henrique es- creveu também largamente, com a rudeza sin- cera que o caracterisava (1). Ambas as cartas deviam ser entregues a elrei pela própria mão do embaixador, o qual pedia que depois de lidas fossem inutilisadas, e na verdade as re- velações nellas contidas eram perigosas, so- bretudo para D. Henrique de Meneses, cujas apprehensões a este respeito se manifestavam (1) Carta de D. H. de Meneses de 6 de outubro de 1535, na G. 20, M. 7, N." 24. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 151 sem rebuço. Significando as diligencias que fazia para baldar as pretensões do seu colle- ga, alludia assim aos perigos políticos que lhe podiam resultar da influencia e poder dos parentes e amigos do arcebispo, como aos pessoaes, procedidos da vingança deste, se transpirasse a noticia do que escrevia, «por- que — accrescentava elle — com o favor de Deus, em nada mais os temo, ao menos de cara a cara.» Pedia não só segredo a elrei, mas também que o mandasse voltar a Lisboa, porque em Roma corria risco de ser envene- nado (1). Apesar de crer que tinha suscitado lodos os possiveis obstáculos ás ambições do seu collega, recommendava a D. João iii es- crevesse directamente ao papa e a Santiqua- tro sobre o assumpto, declarando-lhes cate- goricamente a própria vontade naquella ques- tão do cardinalato. Trahindo os seus desígnios pela vontade cega de os realisar em breve, o arcebispo do Funchal favorecia por mais de um modo a causa dos christãos-novos. Aquelle incidente absorvera toda a attenção de Santiquatro e do embaixador extraordinário, de maneira que (1) «porque estando eu qua,. na quá peçoaha»: Ibid . 152 HISTORIA DA INQUISIÇÃO este somente soube com certeza da existência da bulia de perdão na véspera do dia em que foi affixada nos logares públicos de Roma. Os esforços combinados dos dous tinham mutilisado os de D. Martinho, e o pontifice mostrava-se, emfim, firmemente resolvido a não o admitir no sacro coUegio, mas a ques- tão principal estava perdida. Além disso, a si- tuação de D. Henrique tornava-se demasiado perigosa, porque o seu coUega suspeitara ou soubera o que contra elle se tramara (1). Es- crevendo de novo a elrei no principio de no- vembro, o embaixador não occultava os te- mores que o affiigiam, nem o resultado fatal da dilatada lucta com os christãos-novos. Na própria questão do cardinalato não suppunha impossível um revés, dada a corrupção da cúria e dos mais próximos parentes do papa (2). Tendo chegado as cousas a taes ter- mos entre elle e D. Martinho, receiava tam- (1) «Santiqualro me disse anLontem que este ho- mem (D. Martinho) lhe começava a dizer mal de mim, e que eu me devia de mudar daqui, ou guar- darme muito bem de peçonha» : G. de D. Henrique de Meneses de 1 de novembro de 1535, na G. 20, M. 7, N.« 23. (2) «poderia este homem peytar alguum, ou a Pedro Luiz filho do papa». HISTORIA DA INQUISIÇÃO 153 bem que este o mandasse assassmar e ian- çá-lo no Tibre, ou que o envenenasse, factos de que sobejavam em Roma mais estrondosos exemplos, accrescentando que se poriam de- pois as culpas aos christãos-novos (1). Em consequência disto, pedia a elrei que orde- nasse quanto antes a sua retirada de uma corte, onde não só faltava a segurança pes- soal, mas também se fazia tudo descarada- mente por dinheiro, sendo os menos esbulha- dos os que sabiam conduzir os negócios com maior astúcia (2). Rompendo, emfim, os di- ques a um silencio, que, levado mais longe, seria criminoso, D. Henrique, instruído na- quelle mesmo dia de que a bulia de perdão a favor dos conversos se passara e ia expedir- se para Portugal por um mensageiro de Duarte da Paz, a fim de ser promulgada, denunciava explicitamente os meneios occultos do arce- (1) «porque qua ha um Rio, a que chamão o Tibre, onde já se lançaram muitos homens melho- res qu'eu, e ha também peçonha com que se des- pacharão outros mais honrados; e darão a enten- der que christãos-novos m'o fizeram»: Ibid (2) «De maneira que, como em Tutuão, ou co xarife, acabey este resgate por muito pouco di- nheiro; porque assi se fazem os resgates com al- faqueques»: Ibid. 154 HISTORIA DA INQUISIÇÃO bispo com o procurador dos hebreus, cousa que, aliás, D. João iii parecia não dever igno- rar, porque era facto sabido em Roma, Cas- telia e Portugal. Na sua opinião, o negocio dos conversos estava irremediavelmente per- dido, não só pela connivencia do seu coUega, mas ainda mais pela decisiva parcialidade do papa, que dava conta a Duarte da Paz de quanto se passava com os agentes da coroa, emquanto nada transmittia a estes do que com elle tractava (1). EíTectivamente, a bulia de 12 de outubro apareceu em Portugal. Os raios do Vaticano cabiam emtim sobre a intolerância, e a causa da humanidade e da justiça triumphava ainda uma vez, embora por meios que não ousavam apparecer á luz do sol. A vigorosa resolução do pontífice produziu nos ânimos uma im- pressão profunda. Os tenazes mantenedores da Inquisição viam frustrada a sua incansá- vel perseverança, e o desalento espalhou-se nas fileiras do fanatismo e da hypocrisia. O vulgo exprimia o receio que lhe inspirava o papa com o anexim grosseiro, em que se comparava a condescendência de Clemente vii (1) Ibicl. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 155 com o caracter indomável de Paulo iii (1). A bulia apparecia numa conjunctura em que a lucta entre o poder civil e o núncio Sinigaglia chegara aos maiores extremos. Um clérigo, encarregado por elle de fazer certas intima- ções necessárias para o cumprimento daquel- les breves e instrucções que recebera de Ro- ma, fora preso, não obstante haver o infante cardeal D, Aífonso ajustado com o núncio a celebração de um compromisso, para se pro- ceder, segundo parece, com menos rigor de parte a parte. Aquelle acto do poder civil a respeito de um agente seu levara ao ultimo auge a irritação do prelado italiano, que ful- minou censuras contra os juizes da coroa. Debalde elrei, que estava em Évora, procurara por cartas acalmar o despeito do núncio. Este dera em resposta que para servir o príncipe cederia em tudo, menos em castigar os de- sembargadores, porque, recuando neste pon- to, perderia toda a força moral (2). (1) Commune adagium exivit inter ipsos: aPau- lus non est papa Clemens : non licet Paulo veluti Clementi. . . ostendere, cum sic mordeat. Sat est. Crederunt pontificam veré maximum et maseulurn habere» : Memoriale, na Symm., vol. 31, f. 40 v. e 41. (2) Carta do bispo de Sinigaglia a elrei de 23 de 156 HISTORIA DA INQUISIÇÃO Nesle estado de cousas, fácil é de suppor se Marco delia Ruvere se apressaria a fazer saber a elrei da existência da bulia do perdão. D. João III vacillou ou fingiu vacillar. O pró- prio cardeal D. Affonso mandou abrir as por- tas dos calabouços a muitos, emquanto o nún- cio ordenava desde logo que fossem postos em liberdade aquelles acerca dos quaes lhe tinham sido feitas de Roma recommendações particulares. Procurava, todavia, elrei pôr ain- da diques á torrente, convidando o bispo de Sinigaglia para se dirigir a Lisboa e Évora a conferenciar com elle, e pedindo-lhe que na execução da bulia respeitasse ao menos a di- gnidade da realeza. Na resposta a esta carta, posto que declarasse acquiescer aos desejos do monarcha, o núncio exprimia-se com uma altivez que tocava as raias da insolência, e in- dicava as poucas vantagens que se podiam esperar da soUicitada conterencia (1). Os fau- tores da Inquisição, o vulgo e o próprio D. João III pareciam desanimados, receiando um tíiitubro de 1535, no Corpo Chronol., P. 1, M. 56, xN." 60. (1) Carla do bispo de Sinigaglia a eh-ei de 5 de >!ezembro de 1535, no Corpo Chronol., P. 1, M. 56, N,° 90. HISTORIA DA IXQUISIÇÃO 157 combate em que o supremo juiz delle, o dis- pensador da victoria, se lhes affigurava como inteiramente dedicado a dar o triumpho aos adversários (1). A bulia de 12 de outubro, con- cedendo um perdão que abrangia iodos os réus do judaismo, dava-lhes o espaço de um arino para delle se aproveitarem, e annuUava assim virtualmente a Inquisição. A existência ou não existência futura delia, eis o campo onde devia continuar a contenda. Impedir que o tribunal da fé adquirisse novo vigor era em- preza a que podiam abalançar-se os conver- sos, não só pelas esperanças que nasciam na- turalmente de uma primeira victoria, mas tam- bém porque, asserenada a tempestade da per- seguição por muitos mezes, tirariam para a defesa novos recursos de acção que podiam empregar as victimas libertadas dos ferros dos inquisidores. O fanatismo, porém, que, salteiado de repente, titubeiara e recuara, ou que, pelo menos, o fingira, não tardou em re- cobrar novos brios para a lucta de morte em que se empenhara. No seguinte livro iremos, (1) «Quibus omnibus in dictis regnis notificatis et publicatis acquievit rex predictus, tacuitque ore clauso: timuit to tus populus veterum christiano- num»: Memoriale, 1. ciU 158 HISTORIA DA INQUISIÇÃO de feito, ver a renovação do combate, e assis- tir a novas peripécias desse longo drama, que, tão variado, até aqui temos visto passar. L!VRO V LIVRO V Providencias da corte portuguesa para combater as vantagens obtidas pelos christãos-novos. Revoca- ção do arcebispo do Funchal. Intervenção efficaz e directa de Carlos v no negocio da Inquisição. Tentativa de assassinio contra Duarte da Paz. — Questões vergonhosas entre os conversos e o núncio na occasião da saída deste de Portugal. Effeitos dessas questões em Roma. Triumpho com- pleto do fanatismo. Rulla de 23 de maio de 1536 estabelecendo definitivamente a Inquisição. Pri- meiros actos desta. Monitorio do bispo de Ceuta, inquisidor-mór. Procedimento moderado do novo tribunal. — Diligencias dos agentes dos conversos em Roma. O papa começa a mostrar-se-lhes favo- rável.—Enviatura do núncio Capodiferro, e obje- cto da sua missão. Tendências da cúria roma- na. Manifestação dessas tendências no breve de 31 de agosto de 1537. Considerações politicas que as atenuavam. — Procedimento do núncio. — En- viatura de D. Pedro de Mascarenhas á corte pon- tifícia.—Escriptos blasphemos afixados publica- mente em Lisboa, e consequências desse facto. O infante D. Henrique substituído ao bispo de Ceuta no cargo de inquisidor-mór. — Negociações de D. TOMO II 11 16L' HISTORIA DA INQUISIÇÃO Pedro de Mascarenhas em Roma. Caracter e do- tes do novo embaixador. Corrupções na cúria ro- mana.— Mudanças no tribunal da fé. — Hostilida- des entre o infante e Capodiferro. Processo de Ayres- Vaz. Lucta com o núncio. — Elrei exige a revogação deste.— Discussões violentas e protra- hidas entre o embaixador português e o papa, tan- to acerca da Inquisição como do núncio. Accordos vantajosos e transtornos inesperados. D. Pedro não podendo obstar ás providencias favoráveis aos conversos, obtém, comtudo, a revocação de Ca- podiferro,— Bulia declaratória de 4 de outubro de 1539. Ao passo que chegava a Portugal a bulia de 12 de outubro, chegavam também as car- tas de Santiquatro e de D. Henrique de Mene- ses. D. João III via-se a um tempo menosca- bado pela corte de Roma, contrariado na sua paixão dominante, a perseguição dos judeus, trahido pelo arcebispo do Funchal, e ameaça- do no seu orgulho pela possibilidade de ser elevado ao cardinalato, e de hombreiar com o irmão o próprio homem que o trahira. Eram motivos sobejos para despertar toda a ener- gia do príncipe, aliás instigado, no que toca- va á Inquisição, pelos clamores dos íanaticos e hypocritas, que exerciam sobre o seu espi- rito triste predomínio. Na questão do cardi- nalato importava primeij^o que tudo fazer sair HISTORIA DA INQUISIÇÃO 163 de Roma D. Martintio, revocando-o á corte, e elevando assim uma barreira insuperável ás suas ambições. Pelo que, porém, respeitava aos negócios da Inquisição, era necessário contrapor ás sympathias que os conversos haviam conciliado na cúria, ás poderosas pro- tecções que tinham comprado e ás convicções do pontífice sobre a justiça da sua causa uma influencia que, sobrepujando todos esses ele- mentos de resistência, os vencesse e inutili- sasse. A's intrigas e astúcias diplomáticas es- tava provado que podiam os christãos-novos oppor outras intrigas e astúcias, ás corru- pções outras corrupções e á mascara do zelo religioso a realidade das doutrinas evangéli- cas de tolerância e de humanidade. O único arbítrio que se offerecia para achar uma ala- vanca poderosa, capaz de alluir e derribar es- se conjuncto de obstáculos, era fazer intervir seriamente na questão a omnipotente vontade de Carlos v. Como vimos, já se havia recor- rido a este arbítrio, mas frouxamente e com infeliz successo. Ou os christãos-novos tinham sabido dobrar o animo do embaixador hes- panhol em Roma, ou o próprio imperador não servira nesse ponto o cunhado com sin- cera vontade. Todavia, este meio era aquelle em que sobretudo insistia desde muito D. 164 HISTORIA DA íNQUISIÇÃO Henrique de Meneses, que o próprio arcebis- po do Funchal, de boa ou de má vontade, re- conhecera como o único efficaz, e que, segun- do parece, já anteriormente se havia resolvi- do adoptar, A impotência de todos os outros recursos, provada agora de um modo tão si- gnificativo, aconselhava, portanto, o governo português a seguir activamente aquelle ca- minho. Era uma das condições indispensáveis para o facilitar a retirada de Roma de D. Mar- tinho, de um agente desleal, consideração que reforçava os outros motivos, se não mais gra- ves, mais urgentes, que havia para a sua exo- neração. Com o pretexto de se obterem infor- mações precisas sobre o estado dos negócios da Inquisição, expediram-se ordens terminan- tes para voltar pela posta a Lisboa o arcebis- po, o qual eíTectivamente saiu de Roma no meiado de dezembro (1). Porventura elle não teria obedecido, se não visse transtornados os seus planos pelo cardeal Pucci, o qual, escre- vendo nessa conjunctura a D. João iii, lhe da- (I) É o que resulta aas duas cartas de Santi- quatro a elrei de 10 e de 16 de dezembro de 1535, na G. 20, M. 7, N.® 1; e da carta de Álvaro Mendes, embaixador juncto a Carlos v, de 27 de dezemDro de 1535, na G. 2, M. 5, N.» 3. HISTORIA Da INQUISIÇÃO 165 va, gracejando, a certeza de que. na volta, D. Martinho lhe beijaria a mão com capello de cor verde e não de cor escarlate (1). Pucci descubrira que as esperanças do arcebispo se fundavam numa promessa escripta de Cle- mente VII, pela qual se lhe assegurava a pro- moção ao cardinalato, com a obrigação de partir para a Abyssinia como legado pontifí- cio, obrigação a que elle tencionava esquivar- se com quaesquer pretextos (2). Acompanha- vam a demissão de D. Martinho instrucções a D. Henrique para se dirigir a Nápoles aon- de Carlos V havia chegado. Tinha D. Henrique de tractar ahi com o imperador os negócios da Inquisição portuguesa, acerca dos quaes o príncipe castelhano havia sido prevenido e instado. O embaixador juncto á corte de Cas- tella, Álvaro Mendes de Vasconcellos recebe- ra novas recommendações para ajudar na- quelle empenho o seu collega de Roma, de- vendo ambos junctos seguir Carlos v de Ná- poles até áquella cidade, aproveitando todas as conjuncturas de adiantar a pretensão, a qual, para evitar embaraços, se reduzia a (1) Cartas de Santiquatro, cit. (2) Carta de Santiquatro de 17 de dezembro de 1535, no Corpo Chronol., P. 1, M. 56. N.» 111 166 HISTORIA DA INQUISIÇÃO obter do papa que, tanto acerca do perdão como da organisação definitiva do tribunal da fé, se estatuisse o mesmo que se estabe- lecera em Casteila. Nisto estava de accordo o imperador, promettendo ao cunhado fazer to- das as diligencias para se conseguir o fim proposto, o que esperava com inteira confian- ça depois da demissão de D. Martinho, de cu- ja deslealdade, bem como de tudo o mais que occorrera, estava plenamente instruído (1). Ef- fectivamente, em resultado de varias confe- rencias entre o secretario d'estado, Covos, e os dous ministros portugueses, ordenou-se ao conde de Cifuentes, embaixador em Roma, pedisse preliminarmente ao papa a revogação da bulia de 12 de outubro, ao passo que Car- los V escrevia directamente a Pier Ludovico, filho do papa, exigindo delle influísse naquel- ia revogação. A's representações, porém, de Cifuentes replicou o pontífice que, se na ma- téria da Inquisição estava prompto a fazer tu- do quanto aprouvesse aos dous príncipes, não o estava na do perdão. Além de insistir nas (1) Carta de Álvaro Mendes de 27 de dezembro de 1535 (1. cit.), e carta de D. Henrique de Meneses, de Nápoles, a 17 de janeiro de 1536, no G. Ghro- nol., P. 1, M. 56, N.° 128. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 167 razões geraes que o leitor já conhece, mosr trava-se mais que tudo queixoso da descon- sideração com que o governo português tra- ctara as concessões e propostas da cúria ro- mana, não respondendo opportunamente cou- sa alguma, ao passo que os seus agentes se mostravam altivos e descomedidos. A respos- ta de Pier Ludovico foi análoga á de seu pae; mas dava esperanças de que finalmente o pa- pa faria tudo quanto fosse possivel para con- tentar os dous monarchas. Antevendo que Carlos V pouco se demoraria em Roma, Ál- varo Mendes e D. Henrique de Meneses, ani- mados com aquellas esperanças, souberam convencer o secretario Covos de quanto im- portava que de Nápoles se fizessem todas as diligencias possiveis para mover o animo de Paulo III, de modo que se chegasse a uma conclusão definitiva nos primeiros dias da re- sidência do imperador na capital do orbe ca- tholico (1). Convieram em que, para obter se- melhante fim, Carlos v falasse ao núncio Pau- lo Vergerio sobre o assumpto com efficacia tal, que este não podesse recusar associar-se aos seus desígnios. Assim se fez. Numa lon- (1) Carta de A. Mendes de 27 de dezembro, 1. cit. 168 HISTORIA DA INQUISIÇÃO ga conferencia com os ministros portugueses e o secretario Covos, o núncio, depois de exa- minar o estado da questão e os documentos que lhe diziam respeito, comprometeu-se a in- tervir nella para com a sua corte. Entretanto, o imperador dirigia ao papa uma carta, que devia ser-lhe entregue por Cifuentes, a quem, aliás, se recommendava fizesse a favor da- quelle empenho as demonstrações mais enér- gicas. Desse modo se esperava ficassem apla- nadas as maiores difíiculdades dentro em bre- ve tempo (1). Emquanto estas cousas se passavam em Nápoles, sobrevinha inopinadamente em Roma uma singular coincidência. Certo dia, em que Duarte da Paz acabava de estar com o papa, recebeu por mão de um aggressor desconhe- cido quatorze punhaladas, das quaes se acre- ditou ficaria morto. O precavido converso nunca, porém, se esquecera de que vivia em Roma, e debaixo das vestiduras trazia armas de fina tempera. O crime, como é fácil de imaginar, attribuiu-se a influencias occultas, e o próprio Duarte da Paz, accusando o rei de Portugal e os seus ministros de um assassi- (1) Carta de D. H. de Meneses de 17 de janeiro de 153G, 1. cil. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 169 aio premeditado, pretendia prová-lo em jui- LO (1). Todavia, mezes depois, respondendo a ama carta de Santiquatro, em que se alludia a este attentado e á indignação do pontífice, por ter sido commettido quasi diante dos seus olhos, D João ai desculpava-se, attri- buindo o delicto a uma vingança particular. Estava persuadido de que. se o crime fosse practicado por ordem sua. o houvera sido de modo que a victima não escaparia (2). O fa- natismo gloriava-se de poder contar com a firmeza do braço dos próprios sicários, quando ilj Carta de Álvaro Mendes, ie iN^apoies, a 3 de fevereiro, extractada nos apontamentos de Fr. Luiz de Sousa (Ann. de D. João iii, p. 397) (2) «Acerca das feridas que la lhe foram dadas (a Duarte da Paz) afirmay também a S. S. que nunqua em tal cuidey, nem foy em minha sabedoria, e crede vós também e o afirmay a S S., que se eu tal cousa cuidara se fizera de outra maneira e que >he ficara pouquo luguar pêra suas malícias, e certo que eu receby muyto desprazer de lai lhe ser feyto tanto em presença do Sancto Padre, como dizes, e que o que me foy dicto depoys de seu ferimento foy dize- rem-me que um clérigo com que ele tinha debates lhe fizera ou mandara fazer aquele ferimento»' Mi- nuta da carta d'elrei a Santiquatro, depois de junho de 1536, na G. 2, M. 1. N.» 28—0 que vai em ita- liano está riscado 170 HISTORIA DA INQUISIÇÃO julgasse conveniente empregar na execução dos seus desígnios o ferro do assassino. O temor e os remorsos deviam dilacerar o coração de Duarte da Paz, vendo que a morte era a recompensa final que lhe reservavam pelas suas villanias. Não se achava, portanto, na situação mais própria de espirito para con- servar cordura e audácia durante a nova lucta que se preparava, e na qual, aliás, tinha de en- trar com forçada lealdade, suppondo que as provas de ódio mortal que recebera vinham d'elrei. Em todo o caso, nas próprias appre- hensões achava, digamos assim, um adversá- rio que lhe apoucava a energia. Por outro lado o imperador, ao chegar a Roma, embora alli o levassem negócios de summa gravidade e houvesse de demorar-se apenas treze dias (1), não se esqueceu das suas promessas. Ti- nham-no convencido de que os fundamentos para haver Inquisição tanto em Castella como Portugal eram idênticos, t de que, estabele- cendo-a neste paiz com as mesmas condições da de Castella, se fana uma cousa conveniente e justa (2). Ainda, porém, admittindo a legiti- (1) De 5 a 18 de abril; Paiiavicino. istona id Cone. di Trento, L. 3, c 19 (2) Memoriale Symm.. voi 31, f. 42 e seg.> HISTORIA DA INQUISIÇÃO 171 midade da intolerância, nem assim se dava semelhança Em Castella houvera, ao menos, lealdade ; longe de se obrigarem directamente os judeus a receberem o baptismo, tinham-se expulsado os que preferiam o exilio ao nome de renegados, e não se trahira a palavra real asselada pela fé de diplomas solemnes. Vendo a questão a uma luz falsa, e tendo vendido a sua influencia ao cunhado a troco de soccor- ros marítimos de que carecia (1), Carlos v insistiu por tal maneira a favor das preten- sões da corte portuguesa, que o papa, colocado numa situação melindrosa, e até certo ponto dependente, para com elle, viu-se constrangido a adoptar uma politica diversa da que inspi- rara a resolução de 12 de outubro, cedendo, a despeito da própria consciência, aos furores da intolerância (2). Mas os peiores adversários da causa dos christãos-novos eram, acaso, naquella con- junctura, elles próprios; eram-no as avaras propensões de uma raça envilecida pela op- pressão e pelo desprezo. O leitor está por certo lembrado das offertas pecuniárias feitas (1) Corpo Chronol., P 1, M. 57, N.» 31: — V. de Santarém, Quadro Elem., T. 2, p. 75. (2) Memorial, 1. cit. 172 HISTORIA DA INQUISIÇÃO pelos chefes da gente hebréa, em virtude das quaes se obrigavam ao pagamento de quan- tias mais ou menos avultadas, conforme o grau de favor que encontrassem nas resolu- ções pontifícias acerca das matérias da In- quisição. Ou fosse que se esperasse pelos ef- feitos das novas intrigas que se urdiam, ou fosse pela impressão que produziu o ultimo perdão, é certo que as perseguições tiveram um termo. EUes mesmos confessavam os be- néficos resultados da bulia de 12 de outubro. Fendo de partir para Roma, aonde era cha- mado, o bispo de Sinigaglia exigiu, portanto, o cumprimento dos contractos occultos e si- moniacos em que elle próprio tinha inter- vindo, e das promessas que Duarte da Paz fi- zera na cúria, anteriormente. Com a previsão própria de um agente da corte mais astuta da Europa, o núncio foi diíTerindo a publica- ção e a intimação da nova bulia até concluir aquelle negocio. Numa carta que delle nos resta, dirigida a pessoa interessada nestas transacções ignóbeis (talvez o filho de Paulo III) nos ficaram vestigios profun- dos de alguns dos factos que nas tre- vas acompanhavam as peripécias daquelle drama, e que, se fossem todos conheci- dos, explicariam as que parecem inexplica- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 173 veis (1). Consta dessa carta que ás exi- gências do núncio os christãos-novos de Lis- boa responderam que estavam promptos a pagarem aquillo que por escripto se haviam obrigado ; mas que recusavam cumprir as promessas de Duarte da Paz. As instancias, as ameaças, feitas de modo que ficassem as apparencias salvas (2), não poderam fazer-Ihes mudar de resolução. Diziam que lhes faltavam os recursos ; que o seu agente procedera sem auctorisação ; que quizera indispô-los com o papa (3), promettendo cousas acima das pos- (1) Esta carta, que se acha no Códice do Vaticano 6210, a p. 21, foi transcripta na Symmicta (vol. 2, f. 232) com a data de 1 de março de 1550, quando do próprio contexto se conhece pertencer ao anno de 1536, porque, entre outros indícios, o núncio allude não só á ida de Carlos v a Roma, como cousa que ainda se esperava, mas também ao casamento do infante D. Duarte, que se dizia D. João iii ter em mira fazer, e que effeclivamente se realisou em 1537. Duarte da Paz é alli denominado constantemente il commendatore. Escripta com interrupções, vê-se que foi começada a redigir em janeiro, e só se fe- chou no 1.° de março. (2) «ne con metterli timore, servato il decoro» : Ibid. (3) ahavea ció fatto per ruinarla con Nostro Sig- nore» : Ibid. 174 HISTORIA DA INQUISIÇÃO sibilidades dos seus committentes. Invectiva- vam acremente Duarte da Paz, affirmando que os tinha roubado, do que eram prova quatro mil ducados que mettera no banco em Roma, os quaes pediam a sua sanctidade mandasse alevantar, porque deli es lhe faziam presente. Replicava Sinigaglia, defendendo o procurador dos conversos, e ponderando-lhes que, se fosse verdade o que affirmavam, seria isso mais uma razão para se mostrarem bi- zarros, baldando-lhe por tal modo as damna- das tenções. Lembrava-lhes que o pontifice se julgaria enganado (1), vendo- os ficar satis- feitos com a bulia e recusar o preço delia ; que, presupposto não se haver por isso de torcer a justiça da sé apostólica, todavia era possivel virem elles a achar de futuro certa frieza no papa e nas pessoas influentes da cúria (2). Propunha-lhes por fim que repre- sentassem ao summo pontifice a insufficien- cia dos próprios recursos ; mas nem sequer este partido acceitaram. Partindo para a corte, que se achava em Évora, Sinigaglia ventilou (1) «che Nostro Signore si reputeria ingannato»: Ibid. (2) «dubitavo nel futuro ritrovassero sua santitá é tutti gli altri fredi»; Ibid. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 175 a matéria com os christãos-novos alli resi- dentes ; mas achou da parte delles as mes- mas repulsas. Vendo o espirito que predomi- nava entre os commerciantes de origem hebréa, com quem especialmente tractara, recorreu a três letrados que exerciam poderosa influen- cia entre os conversos, e que por elles eram consultados em tudo o que tocava á lucta com a Inquisição. A estes procurou atemori- sar o núncio com a intervenção de Carlos v, de que já havia noticia. Concordando em que as pretensões de Marco delia Ruvere eram justas, elles prometteram convencer os seus clientes da necessidade de vii' a um accordo, o qual se tomaria numa conferencia celebrada longe da corte, para o que foi escolhida San- tarém. Mas todos estes planos se transtorna- ram. Emquanto o núncio tractava de obter letras de cambio pela somma de cinco mil escudos, que os christãos-novos estavam com- promettidos a pagar, mestre Jorge de Évora, homem de proverbial avareza (1), que tinha entrada com elrei e que era um dos chefes dos conversos, ou revelou o que se passava, ou, colhido de súbito, confessou o que, talvez, elrei descubrira por diversa maneira. A cólera (1) «piú mísero che la miséria»: Ibid. 176 HISTORIA DA INQUISIÇÃO de D. João iii subiu ao maior auge. Os três jurisconsultos que lia viam aconselhado o ac- cordo com o núncio foram obrigados a per- suadir o contrario aos seus clientes, tarefa mais fácil, dadas as propensões destes. Pro curava-se ao mesmo tempo assustar os chris- tãos-novos com a perspectiva de se renova- rem as scenas horríveis de 1506 ; e da pró- pria boca do cardeal infante D. Afíbnso se ouviu o brutal gracejo de que, dando dinheiro á corte de Roma, ficariam os conversos habi- litados para pedir soccorro ao papa no pri- meiro tumulto popular que contra elles hou- vesse (1). Assim se empregavam todos os meios para que o dinheiro dispendido com mão larga não servisse, naquella conjunctura tão propicia, de obstáculo, talvez insuperável, aos esforços de Carlos v a favor da Inquisição portuguesa. Escrevendo para Roma de Braga, onde parara alguns dias na sua volta a Itália, Mar- co delia Ruvere expunha estes successos, o estado dos negócios, e o que havia a fazer. Tinha destinado ir por Flandres, onde espe- (1) ali cardinal. . . li disse: quando si fará un'al- tra unione contro di voi, anderete ai papa, che vi pro veda»: Ibid. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 177 raria a resposta dos chefes dos conversos, annuindo elles ao pagamento de todas as quantias. Se não o fizessem, era que estavam seguros de outra parte quanto ao futuro, aliás seria preciso suppô-ios dementes (1). A ida a Flandres tinha por objecto falar com Diogo Mendes, o mais rico e respeitado he- breu português, e com a viuva de seu irmão Francisco Mendes, a qual subministrara já a maior quantia para a solução dos cinco mil escudos recebidos. Convinha, portanto, que se esperasse pela sua chegada a Roma sem se tomar nenhum arbítrio novo , porque, se a obstinação dos conversos continuasse, de- pendendo tudo directa ou indirectamente do papa, cumpria provar-lhes que eram uns lou- cos se á força de dinheiro haviam procurado assegurar-se de quem não podia salvá-los, em vez de o dar a quem podia. «Então — dizia o núncio — justa e sanctamente se poderia tirar a mascara (2)» Era de opinião que. se o pon- (1) «che siano li maggiori asim dei mondo»: Ibid. (2) «si potra trovar qualcíie modo, si sono asini, di farli-lo conoscere, et si per danari si sono voluti assicurar da chi non può, il mede&imo faccino con chi può, che in tal caso potra cavar la maschera giusta e santamente»: Ibid TOMO n 12 178 HISTORIA DA INQUISIÇÃO tifice desse mostras de querer admittir a In- quisição com o rigor com que se pedia, aca- bariam todas as hesitações e repugnancias. Desconfiava, por outra parte, Marco delia Ruvere que estivessem á espera dos resulta- dos da ida do imperador a Roma, supposto o que, não mudando a politica da cúria por esse facto, pagariam promptamente. No que respeitava a Duarte da Paz, advertia que o mais que se podia esperar era que lhe arbitrassem um ordenado fixo, e isto pelas instancias del- le núncio, sem as quaes já o teriam demit- lido de seu procurador, pelos muitos escân- dalos que lhes havia dado. Era necessário que elle procedesse honestamente e se abstivesse de excessivas despesas ; porque já lhes tinha gasto dez mil escudos. Lembrava que se o agente era largo no prometter, os constituin- tes eram parcos no cumprir, e que em Roma não deviam nestes negócios fiar-se em pro- messas vocaes, mas exigi-las por escripto. Pelo que pertencia á execução da bulia de 12 de outubro, accrescentava que vários con- versos tinham sollicitado do cardeal infante D. Affonso a sua notificação definitiva aos prelados ; mas o infante a havia restituído sem a fazer notificar, por insinuações d'elrei seu irmão, segundo se dizia ; que então ti- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 179 nham recorrido a elle núncio para a mandar, emfim, publicar solemnemente ; que, vendo a estreiteza em que se achavam, aproveitara o ensejo para se obrigar a abrirem as bolças, respondendo-lhes que não lhe parecia pru- dente dar esse passo decisivo, accendendo com elle ainda mais a cólera d'elrei, mas que, desempenhando a palavra do seu procu- rador, e pagando tudo, poderiam mandar por um expresso supplicar a sua sanctidade or- denasse a prompta notificação daquelle im- portante diploma ; que, além deste, lhes sug- gerira outro alvitre, sempre supposta a base do prévio pagamento : era enviar a cada bis- po transumpto authentico do processo para a pubhcação da bulia, e escrever elle núncio ao rei, dizendo-lhe que, tendo sabido como prohi- bira ao cardeal infante fazer aquella publica- ção, do mesmo modo que já obstara a que se fizesse pela nunciatura, não podia deixar de communicar isso ao papa, a fim de este dar as providencias. De tal modo, não haveria motivo para elrei os accusar. Os que tracta- vam do assumpto em Braga approvaram este ultimo conselho, rogando-lhe que não escre- vesse para Roma até o fim de fevereiro, para terem tempo de tractar com os chefes dos conversos, e virem a um accordo sobre o ne- 180 HISTORIA DA INQUISIÇÃO gocio fundamental, o do dinheiro. Não se cumpriram, porém, estas bellas promessas, e Marco delia Ruvere, perdidas já as esperan- ças, remettia a 1 de março apenas as letras dos cinco mil escudos, mesquinho resultado de trafico tão indecente (1). Assim, o excessivo apego ás riquezas, que sempre distinguiu a raça hebréa, ia em auxi- lio dos esforços que se empregavam para a esmagar. Álvaro Mendes e Santiquatro tinham chegado a ponto de prometter dinheiro ao próprio papa, promessas que se não cumpri- ram depois de obtida a Inquisição, mas que Pauio III teve o brio de não recordar (2). No meio da immensa corrupção daquelle tempo, só o ouro derramado com mãos largas po- deria contrastar na cúria romana a conve- niência de satisfazer os desejos de Carlos v, (1) Ibid. (2) Consta isto de uma carta de Santiquatro para elrei de 23 de dezembro de 1538, no Corpo Chronol., P. 1, M. 63, N.° 83. Destes tractos occultos nasceria o escrever D. Henrique de Meneses cousas offensi- vas para o papa, que Jiie trouxeram vivos desgos- tos antes da sua partida, desgostos a que aJIude Santiquatro numa carta a elrei de 2 de maio de 1535 : Corpo Chronol., P. 1, M. 47, N.« 29, no Arch. Nac. HISTORIA DA UNQUISIÇÃO 181 tão energicamente manifestados. Imagine-se, porém, qual seria o effeito da carta de Sini- gaglia em ânimos pervertidos. A primeira vantagem que obtiveram os adversários dos christãos-novos, a pedido do imperador, foi a exoneração do cardeal Ghinucci de membro da juncta ou commissão a cujo cargo estava consultar sobre a longa e variada contenda da Inquisição, sendo substituído por Santi- quatro, que, protector declarado, e a bem di- zer oíBcial, de D. João ni, vinha a ser alli ao mesmo tempo juiz e parte (1). Não tendo de luctar com Ghinucci, que sempre se mostra- ra favorável aos conversos, o hábil Pucci sou- be em breve modificar as idéas de Simonetta, que, tempos depois, confessava ter-se deixado illudir nesta conjunctura (2). Ao mesmo tem- po, Álvaro Mendes, que ficara em Roma de- pois da saída do imperador, continuava a in- sistir com elle por cartas para que recom- mendasse a rápida conclusão do negocio (3). Era impossível resistir a tal conjunctura de (1) Memoriale, 1. cit. (2) Ibid. (3) Carta de Álvaro Mendes, de Roma, a 22 de abril (quatro dias depois da saída do imperador) eai Sousa, Annaes. Doe. pag. 397. 182 HISTORIA DA INQUISIÇÃO incentivos. A 23 de maio expediu-se uma bulia, pela qual se instituía definitivamente a Inquisição em Portugal, e virtualmente se an- nuUava nos seus effeitos a de 12 de outubro do anno anterior, sem todavia a offender na apparencia. Por ella se nomeiavam inquisi- dores geraes os bispos de Coimbra, Lamego e Ceuta, aos quaes seria adjuncto outro bispo, frade ou clérigo constituído em dignidade e doutor em theologia ou em cânones, esco- lhido por elrei. Eram estes encarregados de proceder contra todos os que houvessem de- linquido em matérias de crença, depois do ultimo perdão, e contra quem quer que os seguisse, protegesse ou advogrsse a sua cau- sa, publica ou secretamente, não sendo dos que o haviam feito em virtude do breve de 20 de julho de 1535, e em harmonia com as suas disposições, Resalvava-se, até certo ponto, a jurisdicção dos bispos, auctorisando-os a in- tervirem nos processos da Inquisição, quan- do se tractasse de alguma das respectivas ovelhas, ainda que disso se houvesse abstido no começo da causa. Ordenava-se que, du- rante os primeiros três annos depois da pu- blicação desta bulia, se adoptassem as for- mulas de processo civilmente usadas para os crimes de furto e homicídio, seguindo-se tão só- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 183 mente d'ahi avante os estylos da Inquisição. Ex- ceptuavam-se, todavia, os delictos perpretra- dos dentro dos mesmos três annos, acerca dos quaes continuaria a subsistir o processo civil. A faculdade concedida aos ordinários de tomarem conhecimento dos actos dos inqui- sidores era compensada com ficarem estes habilitados para fazerem o mesmo nas causas de heresia intentadas pelos bispos. Durante os primeiros dez annos, os bens dos condem- nados ao ultimo supplicio deviam passar aos seus herdeiros mais próximos, ou aos immediatos, se aquelles fossem inhabeis para succeder, e não haveria confiscos. Os inqui- sidores ficavam revestidos do poder de no- meiarem procurador fiscal, notários e agen- tes seculares ou ecclesiasticos, sem depen- dência dos respectivos prelados ; de fazerem exauctorar os criminosos, sendo clérigos de ordens sacras, por qualquer bispo ajudado por dous abbades (1), ou por outros indivíduos revestidos de dignidades ecclesiasticas, rela- xando depois os culpados aos tribunaes se- culares; de removerem todas as resistências com os meios canónicos ; de receberem a abjuração dos réus não relapsos e de os (1) A palavra ahbatibus falta na bulia impressa. 184 HISTORIA DA INQUISIÇÃO admittirem ao grémio da igreja sem depen- dência da intervenção dos ordinários , de exercerem, em summa, todos os actos per- tencentes por direito ao ministério de inqui- sidores, delegando os seus poderes, com as devidas limitações, em quaesquer sacerdotes, bacharéis em theologia, em cânones ou em direito e de idade de trinta annos, pelo me- nos, quando não fossem pessoas revestidas de alguma dignidade ecclesiastica, ficando todos estes ministros e agentes, sem exce- pção, sujeitos á jurisdicção dos inquisidores pelos delictos que commelessem no desem- penho do seu cargo. Creava-se um conselho geral nomeiado pelo inquisidor-mór, e regu- lava-se o systema das appelações, que deviam subir dos inquisidores delegados para o in- quisidor-mór e deste para o conselho. Simu- la va-se, até certo ponto, o desejo de proteger os christãos-novos, declarando-se nullas e de nenhum eíTeito quaesquer letras apostólicas ou leis civis que os mandassem considerar a todos como pessoas poderosas para se lhes não revelarem, quando réus, os nomes dos denunciantes e das testemunhas, devendo-se manter acerca delles a distincção de direito commum entre poderosos e não poderosos, revelando-se a estes últimos os nomes dos HISTORIA DA INQUISIÇÃO 185 seus accusadores e dos que deposessem con- tra elles, para poderem impugná-los e defen- der-se. A bulia terminava abrogando todos os privilégios e resoluções pontifícias que obstas- sem á sua execução (1). Apesar de ser expedida a 23 de maio, e das instancias que faziam os agentes de D. João ni e de Carlos v, a bulia da Inquisição só se chegou a enviar nos melados de ju- lho (2), provavelmente pelos embaraços que os numerosos protectores dos christãos-novos em Roma lhe deviam suscitar. A final, D. Henrique de Meneses, que, como vimos, havia muito que insistia na sua exoneração, regres sou a Portugal, trazendo comsigo o resultado definitivo de uma negociação que tantas fadi- gas e desgostos lhe causara. Terminada na chancellaria romana a expedição da bulia, Santiquatro escrevera a elrei nos princípios de junho, explicando algumas das provisões delia, e maniíestando-lhe o pensamento e in- (1) Bulia Cúm ad nihil magis de 23 de maio de 1536: M. 9 de Bulias, N.» 15, no Arch. Nac — Col- lectorio das Bulias da Inquis., f. 1 v. e segg.— Symm., vol. ^í, f. 1 v. (2) Carta de Santiquatro de 2U de julho de 1536, em Sousa, Annaes, p. 398. 186 HISTORIA DA INQUISIÇÃO tenções do papa naquella concessão. Na ver- dade, Paulo III creava quatro inquisidores- móres, mas com o intuito de que só exer- cesse o cargo Fr. Diogo da Silva, bispo de Ceuta, individuo que não fazia temer aos con- versos as injustiças e violências, que aliás es- peravam do bispo de Lamego, o qual D. João III insinuara no anno anterior para aquelle cargo, e cujo nome se incluirá na bulia com o do bispo de Coimbra por simples formali- dade e para não o vexar com uma exclusão offensiva (1). Álvaro Mendes e D. Henrique (1) Minuta de uma caria de D. João iii, em res- posta a outra de Santiquatro de 2 de junho de 1536, que não encontrámos: G. 2, M. 1, N.° 28. Apesar da longa disputa entre Fr. Pedro Monteiro e Fr. Ma- nuel de S. Dâmaso, exposta na Verdade Elucidada, não é absolutamente claro se o Fr. Diogo da Silva, frade menor, bispo de Ceuta, inquisidor-mór em 1536, e depois arcebispo de Braga, era ou não o mesmo Fr. Diogo da Silva, frade mínimo, inquisidor em 1532. Apesar dos esforços de Fr. Manuel de S. Dâmaso, talento bem superior ao do seu adversário, o que elle alcançou provar foi que em 1532 e em 1536 tintia tiavido duas nomeiações diversas ; que na 1.» bulia da Inquisição se fala de um frade mi- nimo não bispo, emquanto na 2.' se fala de um frade franciscano bispo de Ceuta, e que Fr. Pedro Mon- teiro confundira estes dous factos. Ambos os con- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 187 de Meneses tinham-se compromettido a isso com o papa em nome d'elrei. O cardeal re- commendava a este a moderação, sobretudo acerca daquelles que haviam sido violentados a receber o baptismo, e aconselhava-lhe que se contentasse por emquanto do que se lhe tendores parece terem desconhecido um documento contemporâneo em que se affirma a identidade do individuo. E' o requerimento dos christãos-novos feito em 1539 contra a nomeiação do infante D. Hen- rique para inquisidor-mór (Symmicta, vol. 32, f. 184 V.) onde se diz' «Recordabitur Sanctitas Sua quod agentes tunc pro rege etiam S. S. promiserunt quod etiam inter illos três nominatos, episcopus septensis prsefactus, quem bonae memoriae Clemens vu Jam maiorem inquisitorem illic antea creaverat et cons- tituerat, priús habebat uti dicto officio maioris in- quisitoris». Já uma anterior allegação de Duarte da Paz (Verdade Elucidada, Convenção vi, §§ 1 e 2) di- zia o mesmo, apesar da interpretação forçada que lhe dá Fr. Manuel de S. Dâmaso. As difficuldades e contradicções dos documentos relativos a este obje- cto resoivem-se facilmente por uma hypothese que se dava não raro nas ordens monásticas. E' que Fr Diogo da Silva, antes de eleito bispo de Ceuta, teria passado da ordem dos minimos para a dos francis- canos. Porventura, havendo professado naquella ordem fora do reino, e voltando ao seu paiz, onde elia não existia, teria resolvido passados alguns an- nos, filiar-se na dos menores. 188 HISTORIA DA INQUISIÇÃO concedia, com a esperança de que de futuro se accederia aos postulados que não haviam sido satisfeitos. Intercedia, finalmente, a favor da familia e parentes de Duarte da Paz, a quem o papa ia expedir um breve para pode- rem sair do reino, breve que elle pedia fosse respeitado. Respondendo a esta carta, D. João III mostrava-se resignado a acceitar a Inquisição com as restricções impostas aos seus mais largos designios, a realisar as pro- messas dos embaixadores sobre a nomeiação do bispo de Ceuta, e a respeitar a vida e a li- berdade dos conjunctos de Duarte da Paz, embora merecessem, na sua opinião, bem di- verso tractamento, pelas culpas desse homem, em cujo regresso á pátria protestava que não consentiria jamais (1). No meio do seu triumpho, a corte de Por- tugal quiz guardar a principio as apparencias de moderada. A acceitação ofíicial do cargo de inquisidor- mór pelo bispo de Ceuta só se verificou a 5 de outubro, e só a 22 se publi- cou solemnemente em Évora a bulia que ins- tituia o terrivel tribunal (2). O anno concedido (1) Minuta da Carta de D. João m em resposta a outra de Santiquatro de 2 de junho, 1. cit. (2) Collectorio das Bulias rio Saneto-Officio, f. 1 a 6. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 189 aos conversos que houvessem delinquido con- tra a fé, para se reconciliarem, estava com- pleto, e, nessa parte, ficavam mantidas as provisões da bulia de 12 de outubro de 1535. Na realidade, porém, isso pouco embaraçava as futuras perseguições. Com os ódios accu- mulados que ameaçavam por toda a parte os christãos-novos, não faltariam delações e de- poimentos para se lhes provar a existência dos delictos de judaísmo commettidos poste- riormente a essa data, e até era natural que elles existissem, se pôde chamar-se delicto seguir a occultas uma religião perseguida. Pouco importava que a bulia mantivesse a distincção de réus poderosos e de réus não poderosos, para aos segundos se revelarem os nomes dos seus accusadores e das teste- munhas do crime. Como a distincção ficava a arbítrio dos inquisidores, é evidente que essa revelação, muitas vezes indispensável para a defesa, só se daria quando elles não estives- sem resolvidos a condemnar o réu, que nem sequer tinha a garantia da opinião publica para oppor a quaesquer irregularidades, por mais monstruosas que fossem, de um pro- cesso inteiramente secreto. Ao passo que se expediam ordens aos magistrados civis de todo o reino para protegerem os inquisidores 190 HISTORIA DA INQUISIÇÃO e seus agentes, e mandarem prender quaes- quer pessoas por elles designadas (1), o bispo de Ceuta publicava um monitorio em que se estabelecia e regulava o systema de delações acerca dos crimes contra a pureza da fé. Este monitorio era um tremendo roteiro que assi- gnalava os parceis onde se tornaria fácil o naufrágio. Os actos ahi especificados, que de- viam servir de indicio de heresia, eram tantos, e alguns tão insignificantes e até ridiculos, que ninguém se podia considerar seguro de não ser accusado de erro em matérias de fé, quanto mais aquelles que a malevolencia ge- ral trazia vigiados. Não eram só a celebração dos ritos e festas judaicas, a circumcisão e as doutrinas manifestamente oppostas ao catho- licismo, que pelo monitorio do inquisidor-mór deviam ser denunciadas dentro de trinta dias por quem quer que soubesse que alguém ha- via practicado aquellas ou propagado estas depois do perdão de 12 de outubro; era, tam- bém, um sem numero de actos innocentes em si e que, embora coincidissem com supersti- ções judaicas, os mais puros christãos po- diam practicar sem malicia, como ainda hoje (1) Circular de 20 de novembro de 1536, uo Colle- ctorio, f. 147. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 191 subsistem entre o povo usanças cuja origem remonta ás superstições do polytheismo ro- mano, sem que por isso o povo se haja de reputar pagão. O modo de matar as rezes ou as aves, o provar o fio das facas ou cutellos na unha do dedo pollegar, o não comer certas variedades de carne ou de peixe, a altura das mesas em que se tomavam as refeições, a natureza destas, o logar do aposento onde se estava por occasião da morte de qualquer in- dividuo, o porem os pães as mãos sobre a cabeça ou no rosto dos filhos, o renovar as torcidas dos candieiros ou limpá-los á sexta- feira, e outros actos semelhantes obrigavam em consciência, e sob pena de excommunhão, quem quer que os visse practicar, ou delles tivesse noticia, a denunciá-los â Inquisição. Não só se ficava obrigado a accusar como hereje todo aquelle que negasse a immortali- dade da alma e a divina missão de Jesu- Christo, mas também cumpria delatar os que andassem de noite, como as bruxas ou como os feiticeiros, em companhia do demónio, ou que chamassem por este para o haverem de interrogar acerca dos successos futuros (1). (1) Monitorio de 18 de agosto de 1536, no Colle- ctorio, f . 5 6 segg. 192 HISTORIA DA INQUISIÇÃO Antes, porérn, de se abrir tão vosto campo ás delações e á perseguição, tinha-se publi- cado a 20 de outubro um edital em que se marcavam trinta dias para o chamado tempo de graça (1). Por esse edital eram admoesta- dos todos os que houvessem errado contra a fé a irem confessar suas culpas perante o in- quisidor-mór, delatando ao mesmo tempo os delictos alheios, sem exceptuar os dos pró- prios progenitores ou de pessoas fallecidas. Não se alludindo ahi nem levemente á dis- tincção entre os actos anteriores á bulia de 12 de outubro e os posteriores a ella, e exi- gindo-se denuncias até contra os mortos, co- meçava-se desde logo por quebrar as termi- nantes provisões da bulia de 23 de maio, onde se quizera evitar do modo possível as apparencias de uma contradicção flagrante nas resoluções pontifícias. Naquelle edital a Inquisição promettia aos que se reconheces- (1) Este edital, que se acha vertido em latim na Symmicta (vol. 32, foi. 70 e segg.), não foi publicado no Collectorio, onde se encontram os outros docu- mentos análogos. A contradicção em que elle estava com o espirito e letra na bulia de 12 de outubro, e da própria bulia da Inquisição, explica sufficiente- mente essa suppressão. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 193 sem culpados, com animo puro e sincero, o perdão do passado a troco de leves peniten- cias. Deste modo essas expressões de cari- dade, mansidão e doçura evangélicas, em que o edital abundava, convertiam-se numa cousa irrisória, visto que, devendo ser os inquisi- dores os juizes da sinceridade ou do fingi- mento das declarações dos réus, a garantia que se dava a estes vinha a ser o mero ar- bitrio dos seus inimigos. Sacrificadores e vi- ctimas, todos entendiam de antemão que o tempo de graça era uma simples formula. A humanidade e a tolerância da Inquisição nesta conjunctura eram assas problemáticas, não havendo ninguém tão insensato que fos- se fazer contra si próprio uma confissão inútil. A previsão mais natural ; o que parecia inevitável, depois das tenazes resistências oppostas ao estabelecimento do tribunal da fé e dos extremos esforços que ultimamente se haviam empregado para o crear, era que desde logo começasse uma dessas epochas de terror e de sangue, um desses accessos de phrenetica intolerância que tantas vezes ensombram duplicadamente as paginas sem- pre negras dos annaes da Inquisição. Não cremos, porém, que succedesse assim, e as TOMO n 13 194 ;UA DA INQUISIÇÃO instituições mais absurdas, os maiores crimi- nosos têem direito de exigir a imparcialidade da liistoria. Faltam-nos provas directas da moderação do novo tribunal nos primeiros tempos da sua existência, e a Índole e fins delle impelliam-no para a atrocidade : todavia, as maiores probabilidades persuadem que não se tentou dar á bulia de 23 de maio uma in- terpretação demasiado desfavorável aos con- versos, ou pelo menos, que o procedimento dos inquisidores não ultrapassou, como acon- teceu depois tantas vezes, a meta da legali- dade. Lendo-se as allegações feitas em diver- sos tempos pelos agentes dos christãos-no- vos perante a cúria romana, não se encon- tram, relativamente ao periodo immediato á nomeiação do bispo de Ceuta, senão accusa- ções vagas, que mais vão ferir as provisões da bulia de 23 de maio do que os seus exe- cutores (1). Entre os membros do conselho geral, instituído immediatamente por Fr. Dio- go da Silva, achavam-se caracteres dignos daquelle odioso cargo. Tal era, como adiante veremos, o de João de Mello, inquisidor es- (1) Veja-se nomeiaciamente o Memorial: Sym- micta. vol. 31. lbi. 42 e seeríj. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 195 pecial de Évora. Mas havia outros que, sem devermos acreditar fossem modelos de tole- rância, sabiam moderar os Ímpetos do fana- tismo pelo sentimento da justiça. Entre estes contava-se António da Motta, que dous annos depois tinha de luctar contra os excessos do sucessor de Fr. Diogo, o infante D. Henri- que (1), Pelo que, porém, respeita ao inquisi- dor-mór, existe o testemunho insuspeito dos próprios conversos, que, segundo já vimos, o (1) Doe. na Symmicta, vol. 32, f. 252 v. e segg. Deste documento, que adiante havemos de aprovei- tar, se coníiece que o conselho geral teve desde o principio maior numero de membros do que esses que mencionam Sousa e Monteiro (Aphorismi In- quisitor., p. 13 : — Memor. da Acad. d'Hist., T, i, N.° 25), os quaes os reduzem a quatro. Porventura fo- ram desde logo os mesmos seis, de que sabemos era posteriormente composto. O próprio António da Motta nos diz, falando de si naquelie documento: ego in tempere episcopi septensis semper fui de consilio. Et quia videbam (1539) quod dominus in- fans D. Henricus non servabat in his formam buJ- lae, prout ego cum aliis ei multoties diximus». Es- tes deputados do conselho, que ousavam resistir ás illegalidades do infante (ou dos inquisidores, como elle depois declarou, provavelmente por medo) de- vemos suppor que tinham anteriormente procedido melhor do que os outros seus collegas. 196 HISrORIA DA INQUISIÇÃO reputavam homem honesto e moderado (1). Por outra parte, dada a curta intelligencia de D. João III, o capricho offendido devia ter entrado por grande parte no empenho que elrei mostrara em obter a Inquisição, e a vaidade satisfeita pelo triumpho abrandava- Ihe naturalmente a irritação do fanatismo. Accresciam as recommendações do papa e de Santiquatro sobre a necessidade da mode- ração, e o considerar-se que um proceder demasiado violento daria força ás representa- ções dos agentes dos christãos-novos em Roma contra uma instituição que não podiam tolerar, ^que era guerreiada pelos poderosos protectores dos mesmos christãos-novos, e que o papa só concedera constrangido pela necessidade de condescender com as repeti- das instancias de Carlos v. Mas, além destas razões, que persuadem não terem sido os primeiros actos do novo (1) A faila de processos nos cartórios da Inquisi- ção, relativos a estes primeiros tempos, seria uma prova decisiva dessa moderação, se uma grande parte dos mesmos processos não liouvessem desap- parecido antes de serem recolhidos á Torre do Tombo, ou se acaso se podesse demonstrar que el- les se faziam e archivavam então com a mesma re- gularidade que depois de 1540. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 197 tribunal assignalados por excessos de perse- guição, havia outras que mais directamente para isso deviam contribuir. Sem deixarem de proseguir nas diligencias em Roma, os hebreus portugueses procuravam minorar o perigo da sua situação, tentando modificar o despeito de D. João ni. O edital do inquisi- dor-mór, enumerando os actos considerados como indicio de judaísmo, tinha-os enchido de terror. Por intervenção de pessoa addicta ao infante D. Luiz, os chefes da gente hebréa, Jorge Leão e Nuno Henriques, proposeram uma transacção que o infante se encarregou de communicar a elrei, favorecendo-a com o seu voto. Ponderavam elles o que é obvio para o leitor ; que os actos apontados como indicio de heresia eram taes e tantos, que seria impossível evitar constantemente o pra- cticar algum desses actos. Culpados e in- nocentes, todos corriam risco. Elles, porém, sob pena das muletas que se lhes quizessem impor por cada contravenção, compromet- tiam-se a fazer com que nenhum christão- -novo fugisse do reino com familia e cabe- daes, se elrei lhes obtivesse do papa a proro- gação por mais um anno do praso concedido pela bulia de 12 de outubro de 1535, dando- se-lhes assim o tempo necessário para se 198 HISTORIA DA INQUISIÇÃO cohibirem de futuro dos actos reputados sus- peitos, ficando exemptos de denuncias, pelos que, talvez innocentemente, houvessem pra- cticado depois da epocha do perdão. Os dous chefes declaravam que, sem isto, poucos deixariam de tentar a fuga. Posto que o infante não cresse que Jorge Leão e Nuno Henriques exercessem tanta in- fluencia como suppunham, aconselhava, to- davia, ao irmão que viesse a um accor- do, ponderando-lhe a perda immensa que resultaria para o paiz da fuga de tantos vassallos ricos e industriosos, e a impossibi- lidade de obstar a essa fuga, por mais seve- ras que fossem as leis e providencias desti- nadas a impedi-la (1). Não moveram as largas ponderações do infante o animo d'elrei a con- vir na proposta ; mas os conselhos daquelle príncipe, que, pela superioridade da intelligen- cia e pela energia da vontade, sabia muitas vezes fazer triumphar a sua opinião nos ne- gócios mais graves (2), contribuíram, por (1) Carta do infante D. Luiz a elrei (sem data), na G. 2, M. 2, N.« 34. (2) «Apresso il re, nelle cose grandi, possono as- sai Tinfante D. Luigi per autoritá che si ha presa da se quasi violentamente, etc.^i : Tnstruzione ai coa- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 199 certo, poderosamente para a moderação com- parativa, da qual nos parece descubrir vestí- gios durante o tempo em que o bispo de Ceuta exerceu o cargo de inquisidor geral. Entretanto, passados os primeiros dias de desalento, os agentes dos conversos em Roma preparavam-se para recorrer de novo aos meios que haviam opposto aos esforços dos fautores da Inquisição e á influencia d'elrei, que, aliás, sem o auxilio de Carlos v não teria obtido triumpho tão decisivo. As circumstan- cias tornavam a favorecê-los. Com a partida do imperador e dos dous ministros portu- gueses, a pressão immediata e violenta exer- cida sobre o animo do papa cessava, ficando apenas Santiquatro para proteger a causa da Inquisição. Entre as pessoas que se inclina- vam a favor da raça hebréa tinha-se distin- guido sempre o cardeal Ghinucci, e a affronta de haver sido expulso da juncta, a cujo cargo estava o exame e solução daquelle intrincado negocio, devia irritá-lo, tornando-o mais affer- rado á sua opinião e mais activo em fazê-la prevalecer. Apenas a bulia de 23 de maio foi publicada em Portugal, e chegou a Roma a djutore di Bergamo (Symmicta, vol. 12, f. 46 v) que adiante havemos de aproveitar largamente. 200 HISTORIA DA INQUISIÇÃO noticia dos editaes mandados affixar em Évora, os agentes dos hebreus recorreram ao papa com enérgicas supplicas. Repetiam por diverso modo as considerações que tantas vezes tinham já offerecido contra o estabele- cimento da Inquisição, e accrescentavam outras novas contra o theor da bulia e con- tra as illegalidades e absurdos dos editaes. Observavam que, expedindo-se aquella a 23 de maio, se havia falseiado, ao menos inten- cionalmente, o disposto na de 12 de outubro, em que se concedia aos suspeitos e aos réus de heresia um anno para obterem o perdão ; que o cardeal Santiquatro, sendo agente de D. João iii, havia substituído o cardeal Ghi- nucci na juncta encarregada de resolver a questão, ficando assim ao mesmo tempo juiz 6 parte ; que, contra direito divino e humano se expedira definitivamente e se mandara executar a bulia da Inquisição, sem estar abrogada a lei que obstava á saída do rei- no das íamilias hebréas ; que se deixara ao arbitrio dos inquisidores-móres e á influencia d'elrei a escolha e nomeiação dos inquisido- res subalternos e dos officiaes e familiares do tribunal, que, aliás, deviam ser approvados pelos ordinários, e nomeiados individualmente pelo pontifice. Assignalavam, além disso, como HISTORIA DA INQUISIÇÃO 201 viciosas muitas provisões daquelle diplo- ma. Taes eram estabelecer o processo ordiná- rio só por três annos, e supprimir os confiscos só por dez ; estatuir como facultativo o dever restricto que os bispos tinham de intervirem nas causas da heresia ; conceder que tives- sem trinta annos os juizes da Inquisição quando o direito canónico lhes exigia qua- renta ; não providenciar para que os cárce- res fossem accessiveis, servindo de custodia e não de castigo, e para que os inquisidores não procedessem ás capturas sem regra al- guma e a seu bel-prazer : deixar de exigir que fosse bem provado o caracter das tes- temunhas, e de regular os casos em que se dariam tractos, que, aliás, cumpria fossem moderados e em virtude de resoluções con- formes do inquisidor e do ordinário, exce- ptuando-se delles os que a lei civil exceptuava, como doutores e cavalleiros ; finalmente, não ampliar e precisar bem o systema das appe- lações, o que, na opinião dos conversos, era o ponto capital daquelle complicado nego- cio (1). Nalguns dos seus memoriaes ao papa (1) Inquisitio non debuit concedi, etc (Symmicta, vol. 2, f. 271). Rationes quibus S. D. N. mo tus (Ibid. vol. 32, f. 145 e segg.) Este ultimo arrazoado é de '202 HISTORIA DA ÍNOUISIÇÃO OS conversos chegavam a ser eloquentes : Se vossa « sanctidade — diziam elles — despre- zando as preces e lagrimas da gente hebréa, o que não esperamos, recusar prover ao mal, como cumpre ao vigário de Christo, protesta- mos ante Deus e a vossa sanctidade, e com brados e gemidos, que soarão longe, protes- taremos á face do universo, que, não achando logar onde nos recebam entre o rebanho christão, perseguidos na vida, na honra, nos filhos, que são nosso sangue, e na própria salvação, tentaremos ainda abster-nos do ju- daísmo, até que, não cessando as tyranniasi façamos aquillo em que, aliás, nenhum de nós pensaria, isto é, voltemos á religião de Moysés, renegando o christianismo, que vio- lentamente nos obrigaram a acceitar. Procla- mando solemnemente a força precisa de que fomos victimas, pelo direito que esse facto nos dá, direito reconhecido por vossa sancti- dade, pelo cardeal protector e pelos próprios embaixadores de Portugal, abandonando a pátria buscaremos abrigo entre povos menos uma epocha algum tanto posterior; mas do seu pró- prio contexto se conhece que as objecções aqui resumidas foram desde Jogo apresentadas. Veja-se, além disso, o Memoriale, vol. cit., f. 45 e segg. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 203 cruéis, seguros, em qualquer eventualidade, de que não será a nós que o Omnipotente pedirá estreitas contas do nosso procedi- mento». Quanto aos editaes, pondera vam-se os absurdos que nelles se descobrem á simples leitura, e apontavam-se, além disso, outras disposições ahi contidas inteiramente contrarias não só ao direito commum, mas ainda ao espirito e á própria letra da bulia de 23 de maio (1). Estas allegações eram fortificadas por ou- tras diligencias que se faziam, diligencias mais ou menos illegitimas, mas que os costumes devassos do tempo até certo ponto desculpa- vam. Tinha chegado a Roma o núncio Marco delia Ruvere, cujas idéas moraes o leitor já conhece e os christãos-novos deviam por ex- periência própria conhecer ainda melhor. O seu despeito contra elles por questões de di- nheiro estava modificado, e a razão disso fá- cil é de suppor. O que é certo é que o bispo de Sinigaglia foi encarregado de peitar Am- brósio Ricalcati, secretario particular do papa, e, segundo parece, alguma outra pessoa in- fluente, para inclinarem o animo de Paulo iii (1) Rationes erga edictum, etc. Ibid. f. 75 e segg. - Memormle quoddam, etc. Ibid. f. 90 e segg. 204 HISTORIA DA INQUISIÇÃO a proteger de novo a causa daquelles que pou- co antes entregara aos ódios dos seus perse- guidores (1). Não se limitava o prelado italia- no a dar estes passos occultos. Elle próprio expunha ao pontifice com vivas cores (no que não cremos lhe fosse necessário exaggerar ou mentir) o que havia inconveniente, injusto e anti-christão nas ultimas concessões feitas ao fanatismo por motivos políticos (2). Temia o pontifice indispor contra si os dous princi- (1) Em carta do embaixador Pedro de Sousa de Távora de 20 de janeiro de 1538 (Corpo Chronol., P. 1, M. 60, N.° 76), escripta parte em cifra, falando da prisão de Micer Ambrósio, secretario do papa, pelo excesso da sua venalidade, diz o agente por- tuguês: «E antre as outras (peitas) ho bispo de Se- negalha lhe apresentou logo quando vêo de Por- tugal (segue em cifra). Também entendi que (cifra) agora (cifra) não sabendo (cifra) ho mandava com- metter por parte dos mesmos (cifra) cada ano (ci- fra) cruzados, ou mais, para que os favorecesse e estas (cifra) as mãos (cifra); por onde não creo que tenha muito contentamento (cifra) porque quem aquillo commette a outrem he sinal que não du- vidará para sy também tomar o que lhe derem». (2) «Quia jam praefatus dominus nuntius erat in cúria, et sanctitatem suam de omnibus supradictis, pro justitia et veritate, ut creditur, informaverat». Memoriale, 1. cit f. 48 v. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 205 pes, mas incommodavam-no as instantes sup- plicas dos conversos, e faziam-no vacillar as suggestões dos que o rodeiavam. Adoptou um arbítrio: nomeou os cardeaes Ghinucci e Ja- cobacio para examinarem se a bulia de 23 de maio devia ser modificada. A nomeiação de Ghinucci era symptoma evidente de que a po- litica da cúria romana tomava novas direcções, nem o era menos ser chamado ás conferen- cias o ex-nuncio em Portugal. O resultado foi entenderem os dous cardeaes que a bulia ti- nha sido indevidamente concedida e conven- cerem disso Paulo III, que não duvidou de manifestar aos cardeaes Simonetta e Pucci o seu arrependimento. Debalde Santiquatro for- cejava por desvanecer os remorsos do pontí- fice, e conservar Simonetta nas ídéas que lhe inculcara. Arrastado pelos argumentos de Ghi- nucci e Jacobacio, este confessou, com phra- ses grosseiras mas sinceras, haver sido illu- dido, e escusando- se de entender mais na- quelle negocio, declarou que ao papa tocava remediar o mal que se tinha causado (1). Nesta situação a corte pontificia resolveu enviar novo núncio a Portugal. Foi para isso (1) «So stato gabbato: provede sua santità»: Ibid f. 50. 206 HISTORIA DA INQUISIÇÃO escolhido o protonotario Jeronymo Ricenati Capodiferro, cujo breve de nomeiação se ex- pediu a 24 de dezembro de 1536, mas que só veio a partir em fevereiro de 1537 (1). Acha- va-se já então encarregado dos negócios de Portugal em Roma Pedro de Sousa de Távo- ra; mas, ou fosse porque esperava ser subs- tituido (2), ou porque nos faltem correspon- dências suas, ou, finalmente, porque- os con- versos soubessem torná-lo propicio ou pelo menos indifferente, não consta que elle pro- curasse contrariar energicamente as novas tendências da cúria. Era o fim principal da missão de Jeronymo Ricenati satisfazer aos clamores dos christãos-novos, embora a pre- sença de um agente pontifício na corte de D. João III fosse também necessária para outros objectos assas graves. Deram-se ao núncio cartas de crença redigidas por Ghinucci e Ja- cobacio, em que Paulo iii recommendava a el- rei o ouvisse acerca das matérias da Inquisi- ção, e ao mesmo tempo escreveu-se aos in- fantes D. Luiz e cardeal D. Afonso para que, sobre aquelle particular objecto, favorecessem (1) M. 25 de Bulias N.» 4 e 52, no Arch.— Sym- micta, vol. 32, f. 68 e vol. 33, f. 159 v. (2) Corpo ChronoL, P. i, M. 58, N.» 43. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 207 as diligencias do representante pontifício com a sua influencia no animo do irmão (1). As instrucções recebidas por Capodiferro na oc- casião da partida versavam sobre diversos pontos que tinha de tractar, mas eram em parte relativas ao assumpto do novo tribunal da fé. Vinha incumbido de asseverar a elrei que, apesar das queixas dos conversos, nada do que estava feito se mudaria, mas que, por descargo de consciência, o papa ordenava a elle núncio que emquanto residisse em Por- tugal, examinasse todos os processos da In- quisição, para verificar se a bulia de 23 de março se cumpria á risca, e se as promessas de moderação particularmente feitas por elrei se realisavam. Suppondo que não, devia pro- ceder conforme as circumstancias, e sobretu- do obstar a que tivessem a menor ingerência naquelle negocio os que haviam combatido a bulia de perdão, porque não se devia presu- mir que estes taes procedessem por zelo da justiça e da religião, mas sim por o^io e vin- gança. Entre os excluídos indicavam-se ex- pressamente o doutor João Monteiro e um (1) Litteree Paulí ni Joan. regi, Cardinali Portug, et infanti Alois., 7 tebruar. 1537, na Symm., vol. 32, f. 65 e sesK. 208 HISTORIA DA INQUISIÇÃO certo mestre Afonso (1), cujo valimento com elrei o papa extranhava, por ser homem de vida escandalosa e turbulento, do que dera sobejas provas em Castella durante a revolta dos communeros, e que já nas cortes de Évo- ra de 1535, segundo as imformações obtidas em Roma, o povo requerera a elrei affastasse de seu lado. Era agora o papa quem insistia nisto, pedindo-lhe que o mandasse recolher ao convento a fazer penitencia. Accrescenta- va-se nas instrucções a Capodiferro que se esforçasse em persuadir com bons termos elrei da necessidade de se mostrar cauteloso e severo na escolha dos juizes e officiaes da Inquisição, para que, em vez de se punirem os maus e de se deixarem em paz os bons, não succedesse vir aquelle tribunal a servir só para satisfação das malevolencias e vingan- ças dos christãos-velhos. Entretanto, manda- va-se expressamente ao núncio que tomasse conhecimento de qualquer causa em que se practicasse injustiça, e quando isso não bas- tasse, a suspendesse e avocasse a si, para o (1) Era provavelmente o mesmo que oífen- dera a corte de Roma nas suas prédicas a favor da intolerância e do fanatismo. Vide ante p. 15G e seg. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 209 que se lhe facultavam os devidos poderes (1). Dizia-se-lhe também que, se achasse resistência, desse disso conta para Roma, porque assim haveria razão sufficiente para abolir a Inqui- sição. Ultimamente, parecia ao papa dever-se revogar a lei que prohibia a saída do reino aos conversos, lei suscitada de novo em 1535, o que os tornava de peior condição, talvez, que os escravos. Recommendava, portanto ao seu núncio que a este respeito não poupasse instancias com o rei; que lhe dissesse franca- mente ser opinião geral que tanto apego á Inquisição não era da parte delle zelo da fé, mas sim intenção de arruinar aquelles des- graçados; que lhe pintasse tal procedimento como capaz de os tornar peiores que judeus, trazendo- lhes á lembrança o captiveiro do Egypto, e lhe advertisse que, se procedia as- sim com o pretexto de obstar a que fossem fora do paiz professar o judaísmo, melhor era se tornassem judeus por maldade própria do que por tyrannia delle, a quem não era licito (1) o breve destes poderes, datado de 9 de ja- neiro de 1537, acha-se inserto em duas copias au- thenticas no processo de Ayres Vaz: processos da Inquisição de Lisboa, N.^^ 13:186 e 17:749, no Arcli. Nac. TOMO II 14 210 HISTORIA DA INQUISIÇÃO violentar-lhes as vontades, que Deus fizera li- vres e que mais facilmente se dobrariam com a brandura e caridade do que com a violên- cia, a qual em nenhum caso podia compade- cer-se com a verdadeira justiça (1). Taes eram as instrucções dadas ao proto- notario, instrucções evidentemente redigidas com intuito hostil á Inpuisição, e cujo conteú- do os christãos-novos de certo não ignora- vam. Em harmonia com a ultima parte delias, estes dirigiram a elrei uma extensa supplica, em que ponderavam tudo quanto havia tyran- nico e atroz na lei de 14 de junho de 1532, re- validada em 1535, e pediam a liberdade natural de que gosavam os outros vasallos da coroa, não só de saírem do reino, mas também de venderem seus bens de raiz e de levarem com- sigo os próprios cabedaes (2). Porventura a supplica era feita sem a minima esperança de deferimento; mas esse mesmo facto servia para combater a Inquisição, porque tornava mais monstruosa a instituição e dava maior plausibilidade á crença de que a mente d'el- (1) Instruzione di S S. per il signore núncio G. Capodiferro, etc. 33, f. 149. (2) Supplica tio regi íacta, etc, Symm., vol. 32, f. 98 V. e sogg. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 211 rei não era manter a pureza e integridade da fé nos próprios estados, mas sim verter o san- gue de uma parte dos seus súbditos mais opulentos, para se apoderar das suas rique- zas. O estado da fazenda publica auctorisava esta crença. Não era possivel occultar a mi- séria do erário; porque já por esse tempo, afora a enorme divida interna representada pelos padrões de juro, os empréstimos levan- tados em Flandres eram tão avultados, em relação áquella epocha e aos recursos do paiz, que os juros anuaes desses empréstimos su- biam a cento e vinte mil cruzados. Vinham ensombrar este quadro e tornar ainda mais Lemeroso o futuro, não só as despezas inevi- táveis das guerras de Africa, da índia e da colonisação e defesa do Brazil; mas também o génio desperdiçado d'elrei, que, não conten- te de augmentar as difficuldades económicas com a manutenção de frades e com obras dis- pendiosas de conventos e mosteiros, taes co- mo as de Thomar e Belém, desbaratava a fa- zenda do Estado com mercês de dinheiro, verdadeiramente pródigas, feitas a cortezãos e aífeiçoados (1). Conforme o que era de espe- (1) Sousa, Annaes, Append. de Doe. p. 401, 404 e segg. 212 HISTORIA DA INQUISIÇÃO rar, a supplica não teve resultado. Transmitti- da então por copia para Roma e inserida num memorial dirigido a Paulo iii, em que os con- versos, queixando-se da dureza com que eram tractados pelo seu soberano era matéria de tão evidente justiça, pediam protecção ao pae commum dos fiéis, essa supplica indeferida abonava as diligencias que se faziam para an- nullar os effeitos da bulia de 23 de maio (1). Recebendo as instrucções que vimos, Ca- podi ferro recebera também um breve com poderes para proceder á suspensão absoluta ou limitada dos inquisidores, se elles recusas- sem consentir-lhe a inspecção dos seus actos e a modificação das suas decisões, em con- formidade com o pensamento que movera o pontífice a enviá-lo a Portugal. O papa tinha, porém, encarregado vocalmente o núncio de pedir a D. João iii, buscando para isso mover também o animo dos infantes D. Luiz e D. Affonso, que sobreestivesse no exercício da Inquisição, debatendo-se de novo na cúria a conveniência ou inconveniência de se conser- var aquelle tribunal, e mandando-se um em- baixador especial para tractar o assumpto, mas consentindo ao mesmo tempo que saís- (1) Supplicatio, etc. Symm., 1. cit. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 213 sem do reino quatro christãos-novos para advogarem em Roma a causa destes. Se D. João III recusasse formalmente ou protrahisse a resolução definitiva com dilações e argucias, Jeronymo Ricenati devia proceder vigorosa- mente, intromettendo-se em todos os proces- sos, e reduzindo á obediência pela compulsão canónica os ministros do Sancto-Officio que se mostrassem rebeldes. Se, em consequên- cia disso, elrei viesse a um accordo, usaria de moderação e procuraria haver-se de modo que o monarcha se desse por satisfeito, e ao mesmo tempo os christãos-novos não tives- sem queixa da sé apostólica, falando sempre a favor delles, cada vez que sollicitassem a sua protecção (1). Tal era a politica da corte de Roma. O lei- tor não pôde ter deixado de notar as phases por que passou até esta conjunctura o nego- cio da Inquisição. Concedido a principio sem grande resistência e só com as restricções que convinham ao predomínio da cúria, o ter- rível tribunal fora supprimido á força das di- ligencias e do ouro dos conversos, e conce- dido de novo, não porque as convicções ou (1) Ordo lenendus a nuntio iii Regno Porlugaliae ele vol. cil. f. 08. 214 HISTORIA DA INQUISIÇÃO as circumstancias mudassem, mas sim por- que o seu restabelecimento se casava com as conveniências politicas, e os christãos-novos se mostravam remissos em cumprir os con- tractos pecuniários feitos com Sinigaglia. Em- bora o papa houvesse invocado para o suppri- mir as doutrinas immutaveis de caridade, to- lerância e justiça promulgadas no evangelho : essas doutrinas eram condemnadas pela voz imperiosa de Carlos v, e a cúria romana não hesitou em condemná-las também. Agora as cousas mudavam. Os christãos-novos enten- diam melhor outra vez os seus verdadeiros interesses, e as doutrinas evangélicas readqui- riam preponderância em Roma. Pôr na tela da discussão um assumpto já debatido até a saciedade, se não trazia mais luz aos espiri- tos, trazia, sem duvida, novos e avultados pro- ventos aos árbitros e aos mantenedores do combate. Dir-se-hia que Roma, com o dedo no pulso da gente hebréa, lhe calculava os alentos para, sem deixar de se alimentar do seu sangue, não a reduzir a inútil cadáver. Nisto dava provas de maior prudência do que D. João III, o qual cego pelo fanatismo e acon- selhado pela falta de recursos, sonhava, talvez, no avultado dos confiscos que de futuro lhe devia trazer o extermínio daquella raça infeliz. HISTORIA DA INIQUISIÇÃO 215 sem attender a que, transigindo com ella, mas conservando-lhe sempre diante dos olhos o phantasma da Inquisição, teria acliado um systema de espoliação perpetua. Das duas po- liticas a mais franca era a d'elrei ; mas a de Roma era, sem contradicção, a mais sagaz. Fosse porque D. João iii soubesse conciliar a benevolência do protonotario ; fosse porque, como cremos, á Índole do inquisidor-mór re- pugnassem as perseguições violentas, e os actos da Inquisição não dessem sufficiente motivo aos encarecimentos dos christãos-no- vos, é certo que, entrando em Portugal, o núncio não usou dos largos poderes que tra- zia. Enérgicas representações chegavam, po- rém, a Roma poucos dias depois da partida de Capodiferro, tanto contra o segundo edital do bispo de Ceuta, como acerca da nenhuma solução que tivera a supplica relativa á abro- gação das leis de 14 de junho de 1532 e de 1535. O papa dirigiu então ao seu núncio no- vas e mais apertadas recommendações para que procedesse vigorosamente, recommenda- ções cujo resultado parece ter sido nenhum (1). Não desanimavam todavia os conversos. Na falta de uma perseguição demasiado violenta, f 1 ) Memoriale, I. cit. f. 51 v. e seg. 216 HISTORIA DA INQUISIÇÃO com que contavam, e da qual se não encon- tram vestígios positivos, aproveitavam uma circumstancia, grave em si, mas que, dada a comparativa iuoderação do restaurado tribu- nal, perdia parte da sua importância. Como vimos, o papa tinha declarado pelo breve de 20 de julho de 1535 que ser procurador de qualquer réu de judaísmo ou subministrar soccorros aos encarcerados por tal delicto não significava cumplicidade, nem era motivo de se perseguirem os que assim obrassem, nem finalmente auctorisava elrei a pôr-lhes obstáculo á livre saída do reino (1). Apesar, porém, das determinantes resoluções do pon- tífice, tinha-se continuado a insistir na praxe contraria (2). Era sobre isto que os christãos- novos alevantavam vivos clamores. Entendeu a cúria romana que devia manifestar o espi- rito de hostilidade que, ao menos na apparen- cia, a animava contra a Inquisição, provendo de novo acerca de um objecto em que, aliás, materialmente ella interessava ; porque se, á vista da praxe estabelecida em Portugal, se prohibisse a saída do reino aos que iam tra- ctar em Roma das matérias que tocavam ao (1) Vide ante p. 128. (2) Memoriale, 1. cit, HISTORIA D. INQUISIÇÃO 217 tribunal da fé, ou se reputassem fautores de heresia os que para aili enviavam grossas sommas, com o intuito de sustentar a lucta, esse facto redundaria em detrimento da mes- ma cúria. Assim, expediu-se no ultimo de agosto um breve, em que, repetindo-se a dou- trina do de 20 de julho de 1535, se dava ás disposições deile a interpretação que se devia reputar genuina, contraria á opinião daquelles que — dizia o papa — querendo ser mais ati- lados do que cumpria, afflrmavam que ess'ou- tro breve se referia unicamente aos advoga- dos e procuradores em juizo dos que se achavam encarcerados, e não aos que de ou- tro qualquer modo ou em outra qualquer parte, advogavam e protegiam, sobre questões de Inquisição, os christãos-novos, tanto colle- ctiva como individualmente. Declarava por isso o pontífice que o breve de 20 de julho era extensivo a todos os que trabalhassem de qualquer modo em vindicar a innocencia, não só dos réus presos, mas também dos simples- mente accusados ou diífamados, quer estes residissem dentro, quer fora do paiz, quer fossem seus parentes e amigos, quer não ; que era licito a todos proteger judicial ou extra-judicialmente os conversos, patrocinan- do-os, aconselhando-os, fazendo sollicitações 218 HISTORIA DA INQUISIÇÃO e dispendendo dinheiro a favor delles em Por- tugal, em Roma ou em outra parte, comtanto que o individuo que assim procedesse não estivesse accusado ou publicamente diffamado do mesmo crime. O pontifice fulminava as penas de suspensão e excommunhão contra aquelles prelados, inquisidores e magistrados que, pelo simples facto da protecção dada aos réus de judaismo, dentro ou fora do reino, perseguissem alguém canónica ou civilmente, c recommendava a elrei interviesse com a sua auctoridade para se cumprirem á risca as provisões deste breve (1). Apesar de todas estas manifestações, o es- tado das cousas em Portugal relativamente á Inquisição não parece ter mudado. Além de nos faltarem vestígios de que a perseguição houvesse tomado o incremento que os vagos queixumes dos christãos-novos poderiam fa- zer acreditar aos espíritos prevenidos, as pro- videncias do papa, enérgicas na apparencia, (1) «patrocinium, defensionem, auxilium, opem, consilium et íavorem, tam m pai-tibus illis, quam in romana cúria, et extra eam, ubique locoriim praes- lare, ac pecunias et alia ad eorum defensionem ne- cessária subministrare» : Breve Dudum a nobis ult. aug. 1537, Symm., vol. 32, f. 120 e segg. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 219 eram, talvez, modificadas pelas ordens secre- tas que se davam ao núncio. A politica habi- tual da corte pontifícia, e a gravidade de ou- tros assumptos, que então se tractavam entre os dous governos e que se prendiam com os negócios geraes da Europa, obrigavam o papa a contemporisar com D. João iii, visto que já nas instrucções dadas a Capodiferro se havia recommendado a este que attendesse cons- tantemente á justiça dos conversos e a con- tentá-los nas suas supplicas, mas que não attendesse com menor cuidado a propiciar o animo d'elrei (1). Desde os começos do seu pontificado, Paulo iii pensara em fazer uma liga com Carlos v e com os venezianos contra a Turquia, e trabalhava activamente em redu- zir estes últimos a esse accordo. As guerras do imperador com Francisco i de França tra- ziam, porém, embaraços insuperáveis á reali- sação da empreza. Esforçava-se o papa em pôr termo a taes guerras, e uma trégua cele- brada entre os dous príncipes nos fins de (1) «Dirigendo semper unum oculum ad gratifi- candum regi, dexterum vero ad juslitiam, et ad pro- curandum ne quis istorum miseroruni justam lia- beat causam de sanctitate sua et apostólica sedo conquerendi»: Ordo tenendus etc. 1. cit. 220 HISTORIA DA INQUISIÇÃO 1537 animava-0 a proseguir com redobrada efficacia nas suas diligencias. Não foram es- tas baldadas. Assentou-se em que houvesse uma conferencia dos dous soberanos na ci- dade de Niza no Piemonte, para se tractar da paz, conferencia de que resultou a prorogação das tréguas por dez annos. Com a suspensão das armas tinha-se entretanto celebrado um convénio entre o papa, o imperador e a repu- blica de Veneza para se enviar contra os tur- cos uma poderosa armada, e nesta um exer- cito de perto de sessenta mil homens. Esses armamentos extraordinários geravam em mui- tos espíritos, e talvez no do próprio Paulo iii, as esperanças de se estenderem de novo até Constantinopla os limites da Europa christan. Todas ellas, porém, vieram depois a desvane- cer-se pela traição ou pela covardia de André Dória, almirante da frota, que fugiu, depois de haver recusado atacar, numa occasião altamente vantajosa, o almirante turco Barbaroxa, deixan- do-o depois destruir ou tomar varias galés e na- vios que não tinham podido acompanhar o al- mirante christão na sua inexplicável fuga (1). (I) Ranke, Die Hoemisclieu Paepsle, 1. Band, 3. Buch. — Pallavicino, Istoria dei C. dl Trento, L. 4, cap. 5, 6.— FJeury, Hisl. Eccles., L. 138, § 52 e segg. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 221 Taes eram os acontecimentos cujas phases levavam o papa a recommendar ao núncio que procedesse com destreza, para favorecer os conversos sem alienar absolutamente o animo de D. João iii. Dependia elle, até certo ponto, do rei de Portugal na realisação dos seus dous principaes desígnios, o congraçar o imperador com o rei de França e o colligir os recursos necessários á expedição contra os mussulmanos, para a qual devia contribuir com uma parte dos materiaes de guerra, gente e navios. Com este ultimo intuito, re- solvera impor duas decimas nos rendimentos do clero português, e esperava remover as resistências áquella contribuição extraordiná- ria (resistências que, aliás, eram infalliveis) cedendo parte delia a beneficio do poder ci- vil. Para obter, por outro lado, que D. João iii interviesse na reconciliação de Carlos v com Francisco i, tinha enviado credenciaes e ins- trucções a Capodiferro, ordenando-lhe propo- sesse o assumpto a elrei, a quem, afora isso, escrevera (1). Não pertencendo, porém, á ma- téria deste livro essas negociações, não as se- (1) Carta de Pedro de Sousa de Távora a elrei, de Roma, a 15 de novembro de 1537 : G. 2, M. 5, N.» 26» no Arch. Nac. 222 HISTORIA DA INQUISIÇÃO guiremos no seu progresso e resultados, se- não quando servirem, como aqui, para illus- trar os successos que pertencem á nossa narrativa. Baste saber-se quão urgentes eram os motivos que obrigavam o papa a contem- porisar com a corte de Lisboa, e quanto é provável que as instrucções particulares ao núncio nem sempre fossem accordes com as demonstrações externas favoráveis aos con- versos. Emquanto estas cousas se passavam, dis- putava-se na juncta creada em Roma sobre a conveniência de alterar ou não a bulia de 1536, pela qual se restabelecera a Inquisição. O anno de 1538 passou- se nestas controvér- sias e nas intrigas obscuras que deviam acom- panhá-las. A falta que se encontra por esta epocha de documentos relativos ao assumpto está mostrando que nem as violências dos in- quisidores se tornavam mais exaggeradas do que o haviam sido a principio, nem os hebreus portugueses (o que era consequência desse mesmo facto) sollicitavam com excessivo fer- vor a resolução definitiva da juncta. Havia, porém, afora este, outro motivo para aquella temporária bonança; triste motivo do qual haviam de resultar maiores males. Era a cor- rupção do núncio ; corrupção que as instruc- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 223 ções em que se lhe ordenava favorecesse os conversos, mantendo para com eirei um pro- cedimento mais dúplice do que prudente, de certo modo facilitavam. Sem embaraçar a acção dos inquisidores contra qualquer réu, Capodiferro, auctorisado pelo ultimo breve e pelas instrucções que com elle recebera para rever os processos, contentava-se com absol- ver os que a Inquisição condemnava. Não eram, porém, a tolerância christan e os impul- sos de humanidade que o moviam : era a cubica. Abraçara as tradições do seu anteces- sor. Marco delia Ruvere, e entendera que, as- sim como o ouro assegurava a este a impu- nidade em Roma, pelos mesmos meios podia elle sem perigo locupletar- se. Applicando aquelle systema a todas as dependências ec- clesiasticas, imagine-se até que ponto Capo- diferro seria benigno para com os judaisantes, que, pouco a pouco, animados pelo favor do núncio, iam perdendo o temor que a principio lhes incutira o restabelecimento do tribunal da fé, e se tornavam menos cautelosos em dis- farçar as suas occultas crenças. Se acreditar- mos as queixas que o próprio D. João iii di- rigiu, tempos depois, para Roma, o castigo dos crimes religiosos e da corrupção do clero tinha-se tornado impossível com a residência 224 HISTORIA DA INQUISIÇÃO de Jeronymo Ricenati em Portugal. Os empe- nhos e o dinheiro faziam tudo. Choviam os breves, os perdões, as dispensas. Os preços variavam ; porque a somma era graduada, talvez, na razão inversa da influencia da pes- soa que sollicitava o despacho. Gapodiferro sabia ser serviçal quando eram poderosos os protectores; mas a veniaga espiritual devia subir de quilate quando a valia do sollicitador era pequena (1). O núncio não fazia, porém, senão exaggerar o espirito interesseiro da corte de Roma. Lá, lambem, a benevolência (1) «... da estada do núncio aquy creceo tanto a ousadia nos mãos e lanla segurança de poder errar sem castigo e tanta certeza de perdões dos erros por qualquer emformação que seja deles, per preços muy desonestos e inermes e outros muy baratos, e em todos com craro fim e respeito do interesse pró- prio sem lembrança nem da rezão da cousa, nem do escândalo dela, nem da diminuição da jurdição dos prelados a que totalmente são cerradas as portas per esta via de poder castigar nenhum máo, nem governar suas preladas, tantas são as dispensaçôes e os perdões e as bulias que por dinheiro e amizade se alcanção em casa do núncio indistinclamente em todo caso, crime e pena, etc.» — Minuta da carta de D. João in a D. Pedro de Mascarenhas de 4 de agosto de 1539, na Correspond. Orig. de D. Pedro Mascare- nhas, na Bibliotheca da Ajuda. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 225 das pessoas influentes não se obtinha de gra- ça, e, no sentir de alguns, nem o próprio Paulo III era exemplo do vicio commum (1). Dissimulava elrei com Capodiferro, porque a complicação dos negócios pendentes com a cúria romana a isso obrigava. Resolvido a substituir o seu embaixador Pedro de Sousa de Távora por D. Pedro Mascarenhas, que de passagem tinha a tractar matérias de ponde- ração na corte de Gastella e na de França, ordenara em dezembro de 1537 (2) a partida (1) Na carta de Pedro de Sousa de Távora de 15 de novembro de 1537, acima citada, o embaixador português aconselha a elrei que se mostre liberal não só com Santiquatro, que já pedia claramente, e até com termos ásperos, a recompensa dos seus serviços, e além deile com o secretario e o cama- reiro do papa e outros, mas até com o próprio Paulo III. As phrases do embaixador são assas signi- ficativas: «E do papa principalmente V. A. se deve- ria lembrar, pois lhe pode fazer muitos prazeres e também desgostos; e quando não ai, ao menos das cousas da Índia enviar algo que se lhe possa dar, que elles tudo tomão. (2) A rubrica da minuta das instrucções a D. Pe- dro Mascarenhas (Correspond, Orig. na Bibliot. da Ajuda) diz que D. Pedro partiu a 29 de dezembro de 1538. É que se contava o novo anno do dia de na- tal. Assim 29 de dezembro de 1537 vinha por esse calculo a cahir em 1538. TOMO II 15 226 HISTORIA DA INQUISIÇÃO do novo agente. Era um dos principaes fins da missão do D. Pedro evitar a imposição das duas decimas nas rendas ecclesiasticas do reino ; porque, apesar do seu zelo pelas cou- sas da religião, o governo português comba- tia sempre com energia as extorsões da cúria. Chegado a Roma depois dos meiados de 1538, por causa dos negócios que o haviam retido na corte de França, a questão das duas deci- mas e da escusa de irem ao concilio (de que então se tractava com calor) senão todos os prelados portugueses, ao menos aquelles que elrei entendesse, deviam absorver, d'envolta com outros negócios graves, as attenções do embaixador (1). Entretanto não se descuidara de examinar o estado da contenda e quaes (1) Temos a minuta (Correspond. Orig. de D. Pe- dro Mascarenhas, f. 45) da resposta a uma carta de D. Pedro Mascarenhas, escripla de França a elrei a 30 de março de 1538. Nesta resposta, que devia ser dos fins de abril ou principies de maio, apesar de se ordenar ao embaixador a maior brevidade na sua partida para Itália, também se lhe manda trac- tar vários assumptos com Francisco i. Assim, elle devia estar em França ainda em junho. A 1.» carta que nos resta de D. Pedro Mascarenhas, datada de Roma, é uma de 24 de dezembro de 1538 (Corpo Chronol., P. 1, M. 63, N.° 86) sobre as duas decimas. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 227 eram as vantagens que os christãos-novos ha- viam obtido na juncta encarregada de pesar os aggravos de que elles se queixavam. As cousas tinham chegado a maus termos. A preponderância dos adversários da Inquisição nos conselhos do pontifice, preponderância que já se manifestara um anno antes nas pro- videncias expedidas em 1537, não havia dimi- nuido. Ghinucci, um dos cardeaes a quem o papa confiava o exame dos negócios mais graves, restituido á juncta, fazia ahi uma guerra implacável ás pretensões da corte de Portugal, de accordo com Duarte da Paz e com os outros agentes dos christãos-novos. Fora tal o ardor que o cardeal mostrara na contenda, que delle, por assim dizer, estava tudo pendente. As primeiras diligencias do novo embaixador dirigiram-se todas a tirar- Ihe o negocio das mãos, e com tal arte ou energia se houve, que alcançou fazê-lo substi- tuir pelo cardeal Simonetta, aquelle mesmo que, tendo sido favorável á expedição da bulia de 25 de maio de 1536, depois se arrependera eximindo-se de entender nos males delia pro- vindos. Posto que gosasse da reputação de homem honesto, Simonetta era pobre, e ao mesmo tempo tão influente como Ghinucci nas matérias de maior monta. Fazendo-lhe dar 228 HISTORIA DA INQUISIÇÃO aquelle encargo, D. Pedro Mascarenhas espe- rava tirar proveito dessas duas circumstan- cias para os fins que se propunha. Tal era o estado das cousas nos princípios de 1539, quando factos inopinados vieram exacerbar de novo a lucta, por tanto tempo dormente (1). Era em fevereiro desse anno. A corte acha- va-se em Lisboa, e o bispo titular de Ceuta na sua diocese de Olivença. Segundo parece, os trabalhos do tribunal da fé, cuja actividade estava de algum modo annullada pela pres- são que o núncio exercia sobre elle, não eram assas importantes para exigirem a presença do inquisidor-mór em Évora ou na capital. Certa manhan, porém, uma proclamação sin- gular appareceu affixada nas portas da cathe- dral e das outras igrejas de Lisboa. Affirma- va-se nella que o christianismo era um em- buste, e annunciava-se a vinda do verdadeiro Messias. A linguagem desse papel sedicioso, sem nome de auctor e sem assignatura, reve- lava ou um excesso violento de fanatismo ju- daico, ou a intenção de irritar os ânimos con- tra os conversos. Ao lerem-se aquellas blas- (1) Carta de D. Pedro Mascarenhas a elrei, de Roma, a 27 de fevereiro de 1 539, no Corpo Chronol , P. 1, M. 64, N.» 36. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 229 phemias, a agitação foi geral. Emquanto as justiças ecclesiasticas e civis e os agentes da Inquisição diligenciavam por todos os modos descubrir o réu ou réus daquelle attentado, elrei mandava prometter dez mil cruzados de premio a quem os denunciasse. Com estas providencias socegou o povo, entre o qual vo- gavam já as idéas sanguinárias, cuja explo- são produzira, havia trinta e três annos, tão horríveis scenas. Grande numero de christãos- novos procurava salvar vidas e fazendas fu- gindo escondidamente do reino para Africa (1). Ao mesmo tempo, o bispo de Ceuta recebia ordem para delegar os seus poderes no bispo do Porto, em cuja severidade elrei, segundo parece, confiava mais do que na de Fr. Diogo da Silva. Sem que, porém, recusasse obe- decer, o inquisidor-mór ponderou ao monar- cha a possibilidade de ser aquelle attentado obra dos inimigos dos conversos, e a pru- dência com que cumpria proceder em tal (1) Carta de Sebastião de Vargas a elrei, datada de Mequinez, em abril, em que diz que passavam muiios christãos-novos pelos rios de Mamora, La- rache e Salé para as terras de mouros, deixando as fazendas a pessoas que depois lh'as passavam: Corpo Chronol., P. 1, M. 64, N.» 86. 230 HISTORIA DA INQUISIÇÃO caso (1). Concedendo os poderes que se lhe pediam, o bispo de Ceuta ousou fazê-Io com as limitações que suppunha convenientes, em- bora se lhe tivesse pedido uma delegação mais ampla. Conduzidas com destreza as indagações que se faziam, chegou-se finalmente a descubrir o culpado. Era um christão-novo, que ninguém até ahi reputara como tal. Ao menos assim se disse. Levado aos cárceres da Inquisição, confessou ser auctor daquelles escriptos, de cuja doutrina estava persuadido, protestando constantemente que só elle commettera o cri- me. Procuraram convencêl-o do erro ; mas contra a sua pertinácia todos os argumentos e persuações saíram baldados. Julgado na ins- tancia inferior, recusou appelar para o con- selho geral da Inquisição. Era um fanático ou um martyr. Relaxado, porém, ás justiças se- culares, e posto a tormento (o que a Inquisi- ção não fizera) para se descubrir se tinha (1) ase deve muito olhar a emtenção com que hos tais escritos se puseram, se per ventura se fez per indinar V. A. e seus oficiaes e os do pa- dre sanlo e os povos contra hos christãos novos, e per pessoas de pouca prudência, ou se lio feze- ram herejes»: Carta do bispo de Ceuta a elrei, de 21 de fevereiro: Cartas Missivas, M. 3, N.° 61 no Arch. Nac. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 231 effectivamente cúmplices, o animo esmoreceu- Ihe. Negando até o ultimo suspiro que alguém se houvesse associado com elle para a perpe- tração do delicto, reconheceu que o havia hallucinado uma van crença. Assim como es- perava o Messias, assim contava também com a insensibilidade no meio dos mais atrozes tractos, e a dor desenganava-o da vaidade das suas illusões. A luz, porém, que lhe illuminara emfim o espirito vinha tarde para o salvar da vindicta dos homens. Pereceu no meio das chammas, e os que o acompanharam no der- radeiro trance affirmaram que morrera chris- tão e arrependido (1). As circumstancias deste successo são di- gnas de reparo, porque vem confirmar todos os anteriores indicios da moderação compa- rativa com que o tribunal da fé procedia nos primeiros tempos do seu restabelecimento, e de que essa moderação era devida, ao menos em grande parte, ao caracter do inquisidor- mór. As suas suspeitas sobre a possibilidade de haver naquellas manifestações blasphemas (1) Carta do Bispo de Ceuta, cit. — Minutada Carta de D. João iii a D. Pedro de Mascarenhas de 19 de março de 1539, na Correspond. Orig. de D. Pedro de Mascarenhas, na Biblioth. da Ajuda. 232 HISTORIA DA INQUISIÇÃO uma astúcia diabólica, para excitar persegui- ções contra a gente hebréa, não só provam que Fr. Diogo da Silva não era um fanático, mas indicam também que, supremo juiz do tribunal da fé, conhecia por experiência as calumnias e os artifícios que se inventavam para fazer condemnar os christãos-nos. Ve- mos, também, que o miserável judeu, réu de blasphemias publicas contra o christianismo e victima da própria cegueira, só depois de entregue á auctoridade secular recebeu tra- ctos para delatar suppostos cúmplices, signal evidente de que, ou fosse devido á influencia do núncio ou á do inquisidor-mór, ou, o que é mais provável, á de ambos, os actos da In- quisição naquella conjunctura não eram assi- gnalados por demasiada crueldade. Recusan- do, emfim, conceder ao bispo do Porto (1) tão amplos poderes como elrei pretendia, Fr. Diogo da Silva dava ainda outro documento da sua tolerância, mostrando temer-se desse homem, que subsequentemente veremos figu- rar como um dos campeões mais ardentes dos rigores inquisitoriaes. Mas um inquisidor-mór tolerante e illustra- do ; um núncio que, fosse por que motivos (1) Era D. Fr. Balthasar Limpo. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 233 fosse, posesse obstáculos á conderanação de- finitiva dos implicados no crime de judaismo; um tribunal, emfim, cujas abobadas não re- soassem de continuo com os gritos dos ator- mentados, e onde a polé e o potro jazessem no pó e esquecidos, eram cousas monstruo- sas aos olhos dos fanáticos, sobretudo depois do ruidoso acontecimento que escandalisara e irritara o povo da capital. Duas providencias urgiam ; obter do papa maior liberdade para o arbitrio dos inquisidores, restringindo a acção do legado apostólico, e substituir um inquisidor-mór pouco enérgico por outro, cujo espirito não fosse accessivel á piedade, nem demasiado escrupuloso no que tocava aos preceitos da caridade e tolerância evangélicas. Para se tomar a primeira, recommendava-se a D. Pedro Mascarenhas que trabalhasse por alcançar as necessárias exempções (1). Rea- lisar a segunda era mais fácil. Como a bulia de 23 de maio de 1536 auctorisava elrei para escolher um quarto inquisidor geral, além dos três bispos de Ceuta, Lamego e Coimbra, e como só o primeiro tinha exercido esse car- il) Minuta da carta de 19 de março cit.— Carta de D Pedro Mascarenhas de 21 e 20 de junho de 1539, 1. cit. f. 93 V. e 95. 234 HISTORIA DA INQUISIÇÃO go, nada mais havia do que pôr á frente da Inquisição, em logar delle, um individuo de maior confiança e de mais solta consciência. Foi o que se fez. Allegando a sua provecta idade e pouca saúde, e a necessidade de admi- nistrar a pequena diocese de Olivença, Fr. Diogo da Silva pediu ser substituído por pes- soa mais habilitada do que elle para exercer o mister de inquisidor geral. Esta supplica era evidentemente resultado de uma insinuação regia (1) ; porque o bispo de Ceuta não tar- dou a ser eleito arcebispo de Braga, dignidade mais laboriosa que essa de que se exonerava. Tinha- a então o infante D. Henrique, irmão d'elrei, mancebo de vinte e sete annos, que na idade de quatorze fora promovido a prior de Santa Cruz de Coimbra, e na de vinte e dous a metropolita bracharense ; tão bem sabia a hypocrisia daquelle tempo conciliar as de- monstrações do zelo religioso com a quebra (1) O próprio bispo de Ceuta o dá a entender na carta a elrei, de 10 de junho (Collectorio das Bui- las da Inquisição, f. 9), dizendo que pede a exone- ração «por minha idade... e fraca disposição... e por outros justos motivos; como também por me parecer que'^si.rvo V. A. em lhe lembrar isto.y> HISTORIA DA INQUISIÇÃO 235 de todas as leis da decência e da disciplina ecclesiastica. Foi escolhido o infante para substituir o bispo de Ceuta e reanimar a In- quisição de um lethargo, que não condizia nem com a sua indole nem com os fins para que fora creada (1). Não podendo exercer elle próprio o officio de supremo inquisidor, D. João III mostrava, ao menos, bons desejos, nomeiando para o cargo um membro da sua familia (2). O despeito d'elrei pelas blasphemias afiBxa- das nas portas das igrejas de Lisboa tinha sido legitimo, e justa a punição do culpado, posto que repugnem á humanidade os tor- mentos e o atroz supplicio que lhe foram ap- plicados. Mas o substituir a um ancião res- peitável um mancebo, ainda na idade das paixões violentas, no tremendo cargo de in- (1) Carta regia de 22 de junho de 1539, no Col- lectorio f. 9 V. e seg. — Sousa, Historia Genealog., T. 3, p. 265 e seg. (2) Isto que aJguem supporia invectiva nossa, di-lo o próprio D. João m. «Se este carego (o de inquisidor-mór) fora de príncipe secular com muy grande gosto me empregara nele»: Minuta da carta a D. Pedro Mascarenhas, na G. 13, M. 8, N.° 6, no Arch. Nac 236 HISTORIA DA INQUISIÇÃO quisidor-mór era condemnavel manifestação de fanatismo. A escolha de D. Henrique oífen- dia a máxima do direito canónico que reque- ria para o exercicio de funcção de tal ordem a idade de quarenta annos, e sophismava as intenções do pontiíice, que, nomeiando inqui- sidores geraes, na bulia de 23 de maio, três prelados dos mais notáveis de Portugal, e dei- xando a elrei a designação do quarto, não quizera por certo que, sendo inquisidor-mór só um delles, tivesse a preferencia sobre to- dos três o de nomeiação regia, facto tanto mais escandaloso, quanto era sabido que se desi- gnara em primeiro logar o bispo de Ceuta para dar garantias de imparcialidade aos chris- tãos-novos, e que o quasi imberbe arcebispo de Braga era contado entre as pessoas mais adversas a elles (1). Nomeiado inquisidor-mór o infante, expedi- ram-se ordens a D. Pedro Mascarenhas para que assim o communicasse ao pontifice, dando as razões, ou antes os pretextos, que para isso houvera. Longe de deverem os christãos- (1) «ut cJarius loquamur, cúm ipsis novis chris- tianis suspectissimus sit» : Informatio quod iuf. D- Henricus, etc. : Symm., vol. 32, f. i85. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 237 novos receiar uma recrudescência de perse- guição, no entender da corte de Lisboa, o moço arcebispo, ao mesmo tempo que ia res- tabelecer a conveniente severidade para com os maus, era para os bons, pelas suas virtu- des e elevada jerarchia, fiador de paz e segu- rança. Por esta nomeiação, porém, tornava-se mais urgente a necessidade de soltar os bra- ços á Inquisição e, sobretudo, de tirar os po- deres de revisão final concedidos ao núncio, visto que seria absurdo haver em Portugal quem podesse alterar as decisões de um in- quisidor-mór irmão do próprio monarcha e que se considerava como primaz das Hespa- nhas. Para fundamentar melhor as suas pre- tensões, elrei transmittia ao embaixador a re- lação circumstanciada dos attentados contra a fé que os christãos-novos estavam practi- cando para que a apresentasse ao papa. Mas, ou porque esses factos fossem de pura in- venção, ou porque, como elrei affirmava, os conversos tivessem sido trahidos e denuncia- dos por alguns de seus próprios irmãos, cujas traições não convinha se houvessem de sus- peitar ou descubrir, é certo que se recom mendava a D. Pedro Mascarenhas pedisse ao pontífice inviolável segredo acerca daquelias revelações, e ordenava-se-lhe que rasgasse as 238 HISTORIA DA INQUISIÇÃO respectivas notas, logo que lh'as tivesse com- municado (1). As difficuldades com que o agente portu- guês em Roma tinha de luctar eram grandes, assim porque a cúria mostrava claras tendên- cias para favorecer os christãos-novos, como por outras circumstancias. Irritavam o papa as resistências e os artifícios que empregava a corte de Portugal para evitar a extorsão das duas decimas nas rendas ecclesiasticas, ou para, ao menos, ter quinhão na presa (2). Por outro lado, nomeiando-se o infante inqui- sidor-mór, tinha-se previsto e calculado uma collisão com o núncio, que desse fundamento plausível a expulsar este (3), e Gapodiferro (Ij Minuta da carta a D. Pedro Mascarenhas, na G. 13, M. 8, N.° 6. (2J Esta negociação complicada, de que ainda te- remos de falar, entreteve quasi exclusivamente no 1.° semestre de 1539 o embaixador Mascarenhas, cujos hábeis esforços foram em parte frustrados pela imperícia dos ministros de D. João u. Consul- te-se a sua curiosa correspondência, de que existe grande parte na Bibliotheca da Ajuda e algumas cartas na Torre uo Tombo. (3) «esta emleição. . . do infante. . . senão pêra com elle poder myliior deytar desse Reyno o nuncyo»: Carta de D. Pedro Mascarenhas de 21 de setembro de 1539, na sua Correspond. Original, f. 132 v. e 133. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 239 não podia ignorá-lo nem deixar de augmentar a irritação da sua corte prevenindo-a contra D. Henrique. Entretanto, posto que homem de poucas letras, D. Pedro Mascarenhas era uma intelligencia superior, que sabia appreciar as cousas e os homens, e sair com vantagem das luctas em que se empenhava. De indole, segundo parece, recta e desinteressada, tinha a qualidade de alguns estadistas, que, collo- cados em logares eminentes, no meio de uma sociedade e de uma epocha pervertidas, se aproveitam da corrupção para realisarem os seus intuitos, sem se corromperem a si pró- prios; estadistas, cuja triste e suprema crença deve ser um profundo desprezo do género humano. Residira já em Roma tempo suffi- ciente para avaliar bem a cúria pontifícia, e a idéa que fazia delia era extremamente desfa- vorável. Na sua opinião, para bem negociar com Paulo iii não havia outro meio senão fa- zer-lhe crer que ganhava no negocio (1), e por isso tinha aconselhado a elrei, na questão das decimas, que não posesse obstáculo a (1) «tudo o que V. A. quiser negocear bem com este papa ade ser pondolhe seu enteresse diante»: Carta de D. Pedro Mascarenhas de 21 de junho, na .Correspond. Orig., f, 93. 240 HISTORIA DA INQUISIÇÃO uma extorsão que só recahia sobre o clero, comtanto que parte da presa revertesse em beneficio do fisco, arbítrio que fora acceito, embora a transacção não chegasse a con- cluir-se, como depois veremos, com todas as condições que o embaixador desejava (1). As- sim entendera também desde logo que seria impossivel tirar-se ao núncio o direito de re- vista nos processos da Inquisição, por ser prerogativa grandemente rendosa, e de que o papa se não despojaria, senão por mais avul- tados lucros (2). A sua regra para prognosti- car a solução dos negócios em Roma era sa- ber quem dava mais. Dotado do talento de physionomista, tantas vezes útil na vida aos que o possuem, lia no rosto do papa qualida- des de espirito que lhe repugnavam proíunda- (1) aludo se fará como lhe nom tocarem no seu emteresse. E V. A. deste pam de seu compadre deixe ao afilhado levar a parte que quiser, comtanto que a de V. A. non seja mays pequena, e nom queira ser mais piadoso da fazenda ecresiastica do que he seu próprio dono e vigairo uny versai»: Ibid. (2) «tirando o núncio nom aver dem tender nella (na Inquisição): ha quall se nom fará emquanto ahi ouver nuçio nesse Reino em vida deste papa, por- que lhe vay nisso seu emteresse, o que elle nom allarga senão por outro tall ou maior»: Ibid. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 241 mente; mas nessa mesma repugnância tinha incentivo para sempre estar prevenido em tudo quanto com elle tractava (1). Convencido de que onde reina a venalidade só a corru- pção pôde dar o triumpho, obtinha da sua corte os meios de corromper, e empregava esses meios como quaesquer outros. Tentava tudo e a todos. Nem a própria reputação de Simonetta, cuja probidade severa parecia ex- cluir quaesquer esperanças, o fez recuar. Acaso não cria nella. A influencia deste pre- lado e a de Ghinucci eram as que mais temia. Importava-lhe comprá-los. Recebidas de Lis- boa as sommas necessárias, tentou Simonetta por intervenção de Santiquatro. Repellida a offerta pelo pobre velho, esperou confiado que alguma precisão instante lhe trouxesse o (1) «guardará (o papa) o primeyro que tem feyto pela composyçam que tem recebida, senom ouver outro lanço mayor sobre mÍTm>: Id Ibid. f. 101 v. — «Com esta mando a V. A. huma medalha em que o papa está tirado pelo natural bem ao próprio para que veija a filosomia deste pryncepe com quem ne- gocêa, a esperança que de sy promete, e quanta re- são tenho de deseyar que V. A. m'acupe em qual- quer outro serviço por mais trabalhoso que seya, e me tire daqueste, em que o não posso servir sem doença da alma e do corpo»: Ibid. TOMO n IC 242 HISTORIA DA INQUISIÇÃO arrependimento da honestidade. Não tardou este. Num apuro pecuniário, Simonetta lamen- tou-se de ter perdido a offerta espontânea do embaixador; mas a offerta não tardou a ser renovada por diverso canal, e foi acceita. Ha o que quer que seja infernal nas irónicas des- culpas com que D. Pedro Mascarenhas narra ao seu príncipe a prostituição daquellas cans. «Entre os cardeaes — diz elle — Simonetta era tido pelo mais severo na distribuição da jus- tiça. Como tal o collocou o papa no logar que occupa : como tal o consulta e a Ghinucci em todos os negócios mais ou menos graves. Es- tes foram os trances que passei com elle. O que fez não se toma em Roma por maldade, nem se extranha, porque é o costume da ter- ra. Não me espanta, por isso, o valimento que teve aqui Duarte da Paz, tendo-lhes dado a comer tantos cruzados e portugueses (1)». Depois de referir a triste victoria que obtive- ra, annunciava outras mais ou menos fáceis. «Trabalho — proseguia elle — por amansar Ghinucci, não para me servir, mas para não me empecer. Está mais pacifico, e promessas não faltam. Se lhe podesse fazer devorar al- (1)0 português era uma moeda de ouro daquelle tempo. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 243 guns cruzados, faria bom serviço a vossa al- teza. Não desespero disso, porque sei os usos de Roma. Comecei a encetar os dous mil cru- zados que vossa alteza me mandou dar para taes obras, e não creio que me fundisse mal a despesa, nem que damne no porvir. Fie-se vossa alteza da minha má consciência, crendo que sou menos escaco da própria fazenda do que da fazenda real (1)». Com um agente des- tes, o negocio da Inquisição teria naquella conjunctura ganhado muito, se, como disse- mos, a questão das duas decimas não absor- vesse quasi inteiramente as attenções de D. Pedro Mascarenhas, e não lhe repugnasse, conforme se deprehende da sua correspon- dência, tractar de um assumpto enredado de intermináveis debates jurídicos, que a sua alta intelligencia devia condemnar, embora não ousasse manifestá-lo. O principal, ou, pelo menos, um dos prin- (1) Carta de D, Pedro Mascarenhas de 20 de ju- nho de 1539, na Correspond. Orig., f. 104 e v. Numa carta posterior (2 de dezembro de 1539) falando da morte de Simonetta, o embaixador mostra a sua magoa, accrescentando uma ponderação singular: «E o pior foy perder V. A. aquelle servidor que já lhe estava comprado»: Ibid. f. 199 v. 244 HISTORIA DA INQUISIÇÃO cipaes fins com que o infante se collocara á frente do tribunal da fé tinha sido, conforme vimos, dar aso a coUisões que tornassem ne- cessária a remoção de Capodiferro. Apenas revestido da dignidade de inquisidor-mór, D. Henrique nomeiou novos membros para o conselho da Inquisição. Foram estes Ruy Go- mes Pinheiro, depois bispo de Angra, e o au- gustiniano Fr. João Soares, também poste- riormente elevado á cadeira episcopal de Coimbra (1). A escolha de Fr. João Soares era a luva que desde logo o infante arremes- sava ao núncio, ou, para melhor dizer, á corte de Roma, onde aquelle frade era assas mal visto. Nas instrucções dadas por ordem de Paulo III a um dos successores de Jeronymo Recinati, a Índole, as opiniões e os costumes do novo membro do conselho geral são des- criptos de modo não demasiadamente lison- geiro. «O confessor delrei, Fr. João Soares — diz-se ahi — é um frade de poucas letras, mas de grande audácia e em extremo ambi- (1) Sousa, de Orig. Inquisit., p. 13. Ruy Gomes e Fr. João Soares intitulavam-se effecti vãmente do conselho e deputados da saneia Inquisição a 22 de agosto de 1539 ; Processo de Ayres Vaz, Process da Inquis. de Lisboa, N.» 17:749, no Arch. Nac. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 245 cioso. As suas opiniões são péssimas, e elle publico inimigo da sé apostólica, do que não duvida gabar-se, como refinado hereje que é Todos o conhecem por tal, menos o rei, por cujo temor, e porque, com pretexto da confis- são, obtém delle a solução de muitos negó- cios, todos o acatam. E' homem perigoso e de vida dissoluta. O paço serve-lhe de con- vento (1)». O doutor João de Mello, um dos primeiros membros do conselho nomeiados pelo bispo de Ceuta, e que mais uma vez su- bstituirá o inquisidor geral nos seus impedi- mentos, achava-se então delegado da Inquisi- ção em Lisboa. Creada desde logo pelo in- fante uma Inquisição permanente na capital, João de Mello, que se distinguia pelo seu espirito intolerante, e que delle continuou a dar provas, foi collocado á frente do novo tribunal. Esta nomeiação feria mais parti- cularmente Capodiferro, porque naquel^a con- junctura um successo, talvez de antemão preparado com esse intuito, tinha feito rom- per as hostilidades entre o inquisidor e o nún- cio. (1) Instruzzione data ai Coadjutore de Bergamo: Symm., T. 12, p. 42 e seg. 246 HISTORIA DA INQUISIÇÃO Ayres Vaz era um medico do Paço, chris- tão-novo (1), cujo irmão Salvador Vaz entrara como pagem no serviço de Jeronymo Rice- nati logo depois da chegada deste a Lisboa. Ganhara o núncio extrema affeição ao pagem, e tanto o pae como o irmão do moço Salva- dor se haviam tornado Íntimos e commensaes de Capodiíerro. Não limitava Ayres Vaz os seus estudos á medicina : tinha-se dedicado também á astronomia, sciencia cujos cultores naquella epocha facilmente cabiam nos des- varios da astrologia judiciaria, e Ayres Vaz deixou-se embuir da mania de propheta. Em geral, na Europa a astrologia suppunha-se uma cousa seria. Em Roma dominava mais que em parte nenhuma esta superstição, e, segundo a phrase expressiva de um escriptor contemporâneo, raro era o cardeal que para comprar uma carga de lenha não consultava astrólogos e feiticeiros. O próprio papa tinha fé implícita na influencia dos astros e nas (1) Nem do processo de Ayres Vaz, nem dos do- cumentos diplomáticos relativos a esta questão consta que elle fosse christão-novo. Consta, porém, que o era de uma carta de D. Christovam de Castro, a f. 28(J da Correspond. Orig. de D. Pedro Mascare- nhas. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 247 predicções astrológicas (1). Ayres Vaz come- çara por fazer predicções á rainha D. Catha- rina : depois, subindo mais alto, fizera pre- dicções politicas a elrei. Entre outras cousas, por occasião de um eclipse prophetisara a morte de um príncipe, e a prophecia tinha-se realisado no mais velho dos dois filhos que restavam a D. João iii de todos os que até ahi tivera (2). Offerecendo ao monarcha no- vos vaticínios, Ayres Vaz, provavelmente mal visto já pela triste predicção da morte do príncipe, annunciava prósperos successos, mas confessava que as illações tiradas do as- pecto dos astros não tinham absoluta cer- teza ; porque Deus, os arcanos de cuja mente não é dado ao homem perscrutar, muitas ve- zes annullava as influencias sideraes. Com este correctivo os vaticínios astrológicos po- diam ser e eram loucura, porém não impie- dade. Entretanto, uma copia do papel, dirigido pelo pobre medico a elrei sobre taes assum- ptos, foi cahir nas mãos do inquisidor João (1) Ranke, Die Roemischen Paepste, I Band, 3 B (Paulo III) Mendoza, Ibi. (2) O priflcipe D. Philippe, fallecido a 29 de abril de 1539, com seis annos de idade. 248 HISTORIA DA INQUISIÇÃO de Mello. Chamado por este ao seu tribunal, Ayres Vaz confessou ser auctor daquelle es- cripto, posto que ahi houvessem introduzido alguns períodos que não eram seus. Assignou- Ihe o inquisidor um dia para vir defender-se do crime de heresia que commettera. Na con- junctura aprasada apresentou-se Ayres Vaz no tribunal, rodeiado de livros, prompto a mostrar os fundamentos scientificos dos seus vaticínios e a orthodoxia das suas opiniões. Era diíficil o primeiro empenho, mas fácil o o segundo, visto que elle submettera tudo aos decretos inescrutáveis da Providencia, e para se defender podia invocar o exemqlo do chefe supremo da igreja. Subitamente, porém, um notário apostólico entrou no aposento e, in- terrompendo a solemnidade do acto, entregou ao inquisidor um papel. Era uma intimação pela qual o núncio avocava a si o julgamento daquella causa e ordenava que o inquisidor fosse assistir a elle, levando comsigo os theo- logos que deviam disputar com Ayres Vaz, entre os quaes figurava Fr. João Soares. Ti- nha o astrólogo preparado este desfecho, mas o notário antecipara a hora. O physico pre- tendia primeiramente dar uma severa licção aos theologos. Teve, porém, de retirar-se, por- que o inquisidor, cujas esperanças eram ou- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 249 tras, fingiu obedecer sem resistência aos pre- ceitos do legado apostólico (1). Passavam-se estas cousas nos melados de junho, quando a nomeiação do infante para substituir o bispo de Ceuta estava já resol- vida. Contava, por isso, João Mello com o des- forço. Foi o primeiro passo para elle coUoca- rem-no á frente da Inquisição de Lisboa ; mas o seu orgulho exigia-o mais completo. Aos autos do interrompido processo ajunctaram-se os votos dos theologos mestre Olmedo, Fr. João Soares, Fr. Jeronymo de Padilha, Fr. Luiz de Montoia e Fr. Francisco de Villa- franca. Eram frades mais ou menos influen- tes na corte. O escripto fora unanimemente julgado por elles herético. Revestido o infante da nova magistratura, um dos seus primeiros actos foi, portanto, ordenar a prisão de Ayres Vaz, que os officiaes do cardeal D. Affonso, arcebispo de Lisboa, arrastaram aos cárceres do Aljube. A lucta estava encetada. O núncio, que debalde tentara obstar á prisão, mandou intimar o infante D. Henrique para que lhe entregasse o processo, e o cardeal D. Aífonso (1) Todas estas particularidades são extrahidas do Processo original de Ayres Vaz, N.^^ 13:186 e 17:749 dos Processos da Inquisição de Lisboa, 1. cit. 250 HISTORIA DA INQUISIÇÃO para que soltasse o preso ; mas o promotor da Inquisição deu por suspeito o núncio, que recusou a suspeição. Posto que esse tractasse o infante de pseudo-inquisidor, o infante ap- pelou para a sancta sé, appelação que Capo- diterro igualmente rejeitou. Os textos de di- reito canónico e dos praxistas voavam de parte a parte (1). Era um drama em que o excesso do ridiculo só se temperava pela ter- rível perspectiva de uma fogueira para o po- bre astrólogo, se, na refrega entre o agente do papa e os infantes, estes, que tinham a força material, não cedessem ás ameaças dos interdictos, cousa pouco provável, visto que o intuito da nomeiação de D. Henrique fora causar um escândalo que desse em resultado a saída de Ricenati. E o escândalo aproveitou-se. Elrei, que o fanatismo tornava instrumento cego destas vergonhosas contendas, escreveu uma carta ao seu ministro em Roma para que exigisse do papa o desaggravo que consistia na revo- cação do núncio. A narrativa do successo, como se pôde suppor, foi exaggerada naquella carta, e os factos carregados com sombrias cores. Queixava-se D. João iii, sobretudo, de (1) Processo de Ayres Vaz, 1. cit. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 251 haver Capodiferro procedido naquelle caso sem o prevenir e de ter inhibido officialmente o infante de usar do seu officio, negando a legitimidade de uma nomeiação feita por elle rei. Ordenava a D. Pedro que dissesse ao papa, como advertência própria, que, se não retirasse o núncio, este seria expulso, até para evitar alguma commoção popular ; e rom- pendo, emfim, um silencio que D. João iii dizia ter guardado por excesso de delicadeza para com o pontifice, accusava o delegado apostólico de todo o género de corrupções e de ser pelo seu procedimento immoral em Lisboa o opprí. brio da corte de Roma (1). Tal era o estado a que as cousas tinham chegado ; taes as tristes consequências dos erros commettidos por um principe ignorante e fanático, dominado por frades e por hypo- critas, e que tomara por principal mister de rei perseguir a porção mais rica e mais in- dustriosa dos próprios súbditos, embora tra- gando affrontas, arruinando o paiz, abrindo o campo a todo o género de immoralidades, calumniando o christianismo e desobedecendo aos preceitos da tolerância e da caridade (1) Minuta de carta a D. Pedro Mascai-enhas, sem data : Correspond. Orig., f. t>7 v. e sogg. 252 HISTORIA DA INQUISIÇÃO evangélicas. Se Capodiíerro, movido por pai- xões cegas, desacatara dous prelados e prin- cipes, não tinha elle, por paixões igualmente ignóbeis, envilecido de antemão o episcopado soUicitando a Inquisição, tribunal que, sendo uma verdadeira delegação pontifícia, cerceava numa das suas funcções mais importantes a auctoridade dos bispos? A fonte d'onde di- manava o poder do inquisidor geral era a mesma d'onde derivava a do núncio. Se a bulia de 23 de maio de 1536 attribuia ao pri- meiro a magistratura superior no julgamento dos que deslisavam da fé, o breve de 9 de janeiro de 1537 e as instrucções officiaes que se lhe haviam dado por occasião da sua vinda a Portugal auctorisavam o segundo para pro- ceder como procedera, e ainda para ir mais longe. Podia ter sido violento e descortez' mas não exorbitara do seu direito ; e, se a dignidade real fora indirectamente humilhada naquelle conflicto, D. João iii só tinha a quei- xar-se de si, que preparara os elementos de tantos desconcertos. Se, porém, elrei deferia á cúria romana a resolução da contenda, o núncio não se es- quecia de ordenar com vantagem a própria defesa. O mensageiro por quem enviou os documentos que o favoreciam chegou com HISTORIA DA INQUISIÇÃO 253 seis dias de antecipação ao correio mandado pela corte de Lisboa. Assim, os dous prote- ctores de Capodiferro, o cardeal Farnese e o seu mentor, o secretario de Paulo iii, Marcelo Cervino, bispo de Neocastro (elevado depois ao pontificado com o nome de Marcello n) poderam inteirar-se de tudo e prevenir-se para a lucta antes de D. Pedro Mascarenhas receber a noticia do successo e as instrucções que se lhe remettiam. Estavam Marcello o Farnese vendidos a Capodiferro, que repartia com elles das suas rapinas (1), e por isso exposeram o negocio perante o papa a uma luz desfavorável a elrei e seus irmãos. Tinham, porém, que contender com duro adversário. D. Pedro, recebendo de Paulo iii communica- ção official do successo, obteve por Ghinucci (que, para nos servirmos da sua expressiva phrase, parece já tinha amansado) copia dos documentos enviados por Jeronymo Ricenati, e com elles se preparou para o combate. Não tardaram, porém, a chegar os que elrei lhe remettia, e que, concordando em geral com (1) «por Farnês e por Marcello, que elle (Capo- diferro) tem comprados com seus presentes» : Carta de D. Pedro Mascarenhas a elrei de 10 de setem- bro de 1539. — Correspond. Orig., f. 243 e segg. 254 HISTORIA DA INQUISIÇÃO OS do núncio, eram, todavia, mais comple- tos. Tendo consultado hábeis jurisconsultos, o embaixador pediu uma audiência ao papa. Contava com a opposição, e ia precavido para lhe contrapor a astúcia. D. Pedro não falava italiano, e o papa tirava disso vantagem nas discussões diplomáticas. Quando lhe convi- nha, entendia o português ; quando lhe não convinha, succedia o contrario. Vice-versa, embora o embaixador invocasse em qualquer occasião as suas anteriores palavras, se tinha mudado de parecer argumentava com a igno- rância de D. Pedro, para afflrmar que o per- cebera mal e que tal cousa não dissera. Con- tra esta má fé, adoptara o ministro o arbítrio de lhe apresentar escriptas em italiano as matérias mais árduas, com o pretexto de não o constranger a decifrar o português. Reme- diava assim, em parte, o mal. Da carta d'elrei levou vertidos os períodos que deviam ser communicados ao pontífice. Ao chegar pe- rante este, achou ali Farnese e Marcello, cir- cunstancia nova em taes audiências. Apres- sou-se o papa a explicar-Ih'a. Eram elles que tinham de tractar do assumpto, e podiam as- sim ficar desde logo inteirados da matéria. Persuadido de que intentavam confundi-lo, o ministro português dissimulou, agradecendo HISTORIA DA INQUISIÇÃO 255 ao pontífice os seus desejos de abreviar o negocio e pedindo-lhe que -fizesse juiz da con- tenda o próprio Farnese, que, como prelado e príncipe, não podia deixar de entender com que respeito cumpria fossem tractados taes príncipes e prelados como os infantes de Por- tugal. Apresentando então o original e a ver- são da carta delrei, e lida esta ultima por Marcello, observou o papa que toda a ques- tão se resumia em dous pontos : em se pedir que o núncio fosse revocado e em se enume- rarem os seus erros ; que, pelo que respeitava ao primeiro, a solução era fácil, porque elle tinha como regra não conservar em qualquer corte um agente que não agradasse ao res- pectivo soberano ; mas, pelo que tocava ao segundo, era necessário appreciar o procedi- mento de Gapodiferro, porque a forma da re- vocação dependia desse facto, honrando-o se estivesse innocente, punindo-o se estivesse culpado. A isto accrescentou que as pessoas a quem mandara examinar a questão e os documentos enviados pelo núncio achavam que elle tivera fundamento para se offender da desobediência dos infantes, visto que, como ecclesiasticos, tinham mais restricto dever de respeitarem o pontífice do que o soberano ; que em não reconhecer D. Henrique por in- 256 HISTORIA DA INQUISIÇÃO quisidor-mór estava a razão da parte do nun cio, supposto o defeito de idade ; que, ainda quando o não houvera, nem eile papa, nem elrei deviam consentir em que o infante exer- cesse tal cargo ; elrei, porque, sendo o impe- trante da Inquisição, não era decente nomeiar seu próprio irmão juiz de causas em que in- teressava ; elle papa, porque tinha que dar contas a Deus e ao mundo da concessão da- quelle tribunal. Concluiu o pontífice por de- clarar que, se ao embaixador restavam ou- tros cargos contra Jeronymo Ricenati, os desse por escripto, para se verificar a sua exacção e punir- se o núncio no caso de estar culpado (1). As ponderações de Paulo iii eram ao mes- mo tempo razoáveis e astutas. Mostrava- se prompto a revocar Capodiferro; mas, desde que este era accusado, cumpria averiguar a verdade das accusações. Sem isto, tornava- se árduo escolher o modo da revocação. A prompta acquiescencia do pontífice aos de- sejos da corte de Portugal ficava assim em vans palavras emquanto se não dirimisse a questão da culpabilidade. Accusando official- mente o núncio, o próprio D. João iii se en- (1) Ibid. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 257 volvera num dédalo de discussões interminá- veis. Apesar, porém, do terreno vantajoso em que o papa se coUocara, o embaixador com- bateu com destreza as suas objecções. Re- cordou-lhe que a nomeiação do infante fora já virtualmente approvada por elle papa. quando, pouco havia, se lhe communicara esse facto ; porque, pedindo ao mesmo tempo elle embaixador que se tirasse ao núncio o dii'eito da revisão, para não ficar superior ao infante, e se esclarecessem alguns pontos obscuros da bulia de 23 de maio, sua sancti- dade se limitara a dizer-lhe que transmittisse a Ghinucci, Simoneta e Santiquatro, dos quaes se compunha a commissão encarregada deste negocio, os apontamentos sobre as reformas pedidas, declarando-lhe que, sendo seu repre- sentante o núncio, nenhum desar havia para o infante em lhe reconhecer superioridade, o que era necessário por emquanto para os christãos-novos se persuadirem de que ti- nham recurso contra os inquisidores; que, usando de tal linguagem, sua sanctidade ap- provara virtualmente a nomeiação. Em seu en- tender, os infantes tinham mostrado todo o respeito á sé apostólica dissimulando a inso- lência de Capodiferro, que, por excesso de TOMO II 17 258 HISTORIA DA INQUISIÇÃO paixão, se mostrara indigno do cargo que exercia, e sustentou que a revocação se podia verificar independente do processo. Fazendo allusões pungentes á corrupção dos ministros pontifícios, desmascarou Marcello e Farnese, provando pelas declarações contradictorias dos dous que nem os próprios documentos remettidos pelo núncio tinham sido apresen- tados senão em extracto aos jurisconsultos a quem Paulo iii incumbira o exame jurídico da matéria, e ajunctando ás exprobações a ironia, perguntou a Marcello se o extracto fora feito e traduzido pelo procurador dos christãos-novos, por cuja intervenção a corte de Roma recebera os papeis enviados pelo seu representante em Lisboa. Substituindo assim a aggressão á defesa, obrigou o papa a mostrar-se agastado contra Marcello e Far- nese, ordenando-lhes que entregassem o exa- me da matéria aos cardeaes Ghinucci e Del Monte, traduzindo-se os documentos vindos de Portugal por quem o embaixador enten- desse. Entretanto, na questão de ser o infante mquisidor-mór, negou que as suas palavras tivessem significado a approvação de um facto que elle reputava odioso, embora D. Pe- dro Mascarenhas sustentasse a validade da nomeiação e previsse fataes consequências HISTORIA DA INQUISIÇÃO 250 da cólera d'elrei. Pelo que tocava á revocação do núncio, declarava que, se D. João iii insis- tisse nella, dando-se tempo para se lhe esco- lher successor, o faria retirar, mas sem de- monstrações de desagrado, no qual só poderia incorrer Capodiferro se lhe fosse provada culpa. O pontifice, que a principio titubeiara diante da aggressão do embaixador, accen- dendo-se gradualmente, concluiu também por fazer graves recriminações. O que elrei não queria, quanto a elle, era que houvesse nún- cio em Portugal; que não descansara sem expulsar Sinigaglia, e que procurara pôr obs- táculos á enviatura de Capodiferro. Declarava, porém, que, se era esse o alvo a que se ten- dia agora, o mais conveniente seria falar cla- ro ; mas que se lembrassem de que, se a sancta sé enviava delegados aos paizes catho- licos, era para o melhor serviço da igreja, e para poupar aos povos o incommodo e a des- peza de irem soUicitar em Roma os despachos e graças apostólicas de que tantas vezes ca- reciam (1). Esta explosão iracunda do papa subminis- trava a D. Pedro Mascarenhas ensejo para lhe (1) Ibid. 260 HISTORIA DA INQUISIÇÃO dizer duras verdades. Não era homem que o desaproveitasse. Ou porque de feito se doesse da linguagem severa do supremo pastor acerca das intenções do seu soberano, ou porque lhe conviesse fingi-lo, o embaixador repelliu com mostras de indignação a idéa de haver em elrei pensamento reservado acerca dos núncios, ou sequer malevolencia pessoal contra Jeronymo Ricenati. Quando, porém — observava elle — a corte de Portugal repug- asse a uma nunciatura permanente no paiz, não era isso extranhavel, porque havia duas razões para semelhante repugnância. Era a primeira ser a nunciatura cousa nova e insó- lita : era a segunda o mau procedimento dos representantes da sancta sé. D'antes, os papas enviavam só legados extraordinários em ca- sos urgentes. Clemente vii fora quem estabe- lecera um núncio residente, D. Martinho de Portugal ; mas este, ao menos, era português. Depois viera Sinigaglia, antes como coUeitor das meias annatas, que se deviam das igre- jas, do que como núncio. Protrahindo a sua residência até a morte de Clemente vii, Marco delia Ruvere só se retirara quando fora subs- tituído por Capodiferro. A historia da nuncia- tura em Portugal era asquerosa, no entender do embaixador. Sinigaglia, abusando dos po- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 26 í deres de que estava revestido, tinlia sido um verdadeiro tyranno, e o papa fallecido tê-lo-hia, por certo, punido, se vivera, ou o paiz o re- pelliria do seu seio. Capodiferro seguira o exemplo do antecessor; mas, achando o ca- minho aberto, progredira com mais rapidez, até chegar ao extremo de insultar a familia real (1). Na sua opinião, os núncios eram o flagello do reino; porque offendiam a justiça, damnificavam as fortunas e corrompiam a re- ligião, bastando attender a que três quartas parles dos indivíduos de vulto em Portugal se podiam considerar membros do corpo eccle- siastico, uns como sacei dotes, outros como minoristas, outros como commendadores das ordens militares. A bem dizer, estendia-se a todos e a tudo a jurisdicção do núncio, «em quem — observava o ministro português — com pouco trabalho e dinheiro achamos re- (1) «nos quays (dous annos) se portara de ma neira em seu oficio tyrynisando este remo com seus poderes que se o papa vivera mais, nom sementes lio revogara mas lio castigara como suas culpas mereciam, ou a mesma terra o nom poderá lá se frer, e que este que S. S. agora la tinha segira as pisadas do seu antecessor, senam quanto por achar o caminho aberto ho andara mais depressa»: Ibid. 262 HISTORIA DA INQUISIÇÃO curso para nossas culpas, fiados no que, e na fácil exempção do castigo, os malfeitores se abalançam a perpetrar os maiores delictos». Se o pontifice continuasse a mandar esses delegados permanentes, aconselhava-o como christão (porque o que dizia era nessa quali- dade e não na de embaixador) a que fosse severissimo na escolha, de modo que os seus representantes cuidassem mais no serviço da igreja do que em se enriquecerem, como até então haviam feito. Ainda assim, afflrmava que, se qualquer núncio se conservasse du- rante seis mezes em Portugal, por mais vir- tuoso que fosse, tornar-se-hia tão mau como os passados, sobretudo se tivesse o direito de revisão nos processos do tribunal da fé. Os lucros que d'ahi provinham á nunciatura eram taes, e a liberdade dos christãos-novos tamanha, que não só homens, mas até pedras, por assim dizer, se corromperiam. «A prova disso — accrescentava maliciosamente o em- baixador — tinha-a sua sanctidade no vali- mento de que gosava em Roma o procurador dos conversos, d'onde se podia conjecturar qual seria a influencia que os mesmos con- versos exerceriam sobre o núncio em Portu- gal, onde estavam tão perto deste, e elle tão longe do papa, sobre quem recahia a infâmia HISTORIA DA INQUISIÇÃO 263 de todos esses abusos, ao passo que o pro- veito era dos seus delegados (1).» O desassombro com que D. Pedro falara produzira o effeito que desejava. Paulo iii col- locou-se na defensiva. Deplorou que taes fac- tos se practicassem, promettendo providen- cias, e admirando-se de que, no meio de tan- tos desconcertos, não tivesse havido quem se queixasse para Roma. A resposta, porém, do embaixador foi peremptória. Ninguém se quei- xava, porque a persuação geral era que todas as representações dirigidas á cúria romana neste sentido seriam inúteis. Assim, as cou- sas teriam continuado indefinidamente no mesmo estado, se o núncio não houvera com- mettido a imprudência de entrar em lucta com os infantes, suscitando com tal procedi- mento a animadversão d'elrei (2). Era uma triste confissão a que D. Pedro Mascarenhas fazia. A corte de Portugal tolerara as dema- sias e prevaricações de Gapodiferro, e conti- nuaria a tolerá-las, se uma questão de orgu- lho não a tivesse revocado ao sentimento do próprio dever e ao zelo, um pouco tardio, da moralidade e da justiça. (1) ibid. (2) ibid. 264 HISTORIA DA INQUISIÇÃO Depois desta tempestuosa audiência, Pau- lo III partiu para Tivoli e Frascati, d'onde só voltou a Roma a 5 de setembro, saindo de novo para Loreto passados quatro dias. De- batia-se entretanto a questão do núncio e dos infantes entre os cardeaes Ghinucci e Del Monte e os advogados escolhidos pelo embai- xador para sustentarem a causa dos prínci- pes. Se os factos que Capodiferro allegava nas suas informações eram exactos, elle nem os injuriara, usando de um direito que ao mesmo tempo era um dever seu, nem deixara de guardar respeito ao soberano e a seus ir- mãos, mandando rogar antecipadamente a D. João III por um dos seus próprios validos, cujo testemunho invocava, que não o compel- lissem a usar dos poderes que lhe haviam sido commettidos. Por estas e outras circumstan- cias a discussão protrahia-se, e o embaixador não poderá, durante os quatro dias que o papa se demorou em Roma, alcançar nova audiência. Com a audácia, porém, que o cara- cterisava, D. Pedro Mascarenhas penetrou, emfim, alta noite e quasi á força no sacro pa- lácio, poucas horas antes da partida do papa para Loreto. Estava convencido de que a re- pugnância do pontífice a ouvi-lo procedia de querer evitar emquanto podesse a revocação HISTORIA DA INQUISIÇÃO ii65 do núncio, e queixou-se amargamente da des- consideração com que eram pospostos os ne- gócios mais urgentes d eirei seu amo O des- peito de Paulo iii pela intrusão do embaixador converteu-se em explicações e desculpas. Quiz depois convencê-lo da conveniência de ficar em Roma para convalescer de uma doença que padecia ; Mas D. Pedro Mascarenhas re- cordou-se naquelle momento de uma pro- messa de romagem ao sanctuario do Loreto, promessa para cujo cumprimento achava a conjunctura propicia. Posera o papa a mas- cara da benevolência ; elle punha a da devo- ção. Vieram, emfim, a um accordo. D. Pedro ficaria em Roma ainda um dia para ver cer- tas notas que Ghinucci e Del Monte deviam transmittir-lhe sobre a reforma da Inquisição.. e depois iria encontrar-se com o papa em Viterbo, onde também estaria Santiquatro, e d'onde se expediria para Portugal um correio com as resoluções ahi tomadas (1) Supposta a astúcia da corte de Roma, seria iicito suspeitar que as annunciadas commu- nicações de Ghinucci e Del Monte eram um meio a que se recorria para suscitar embara- ços ao embaixador, distrahindo-lhe a attenção (1) ibid 266 HISTORIA DA INQUISIÇÃO com um negocio não menos importante que o da revocação do núncio, e, além disso, com- plexo e difficil. Entretanto, o mais provável é que os protectores dos conversos instassem pelas modificações da bulia de 23 de maio, que os mesmos conversos pediam, antes que Gapodiferro saísse de Portugal e elles ficas- sem entregues sem protecção ás perseguições de que era annuncio nada equivoco a mu- dança de inquisidor-mór. Fosse o que fosse, é certo que os dous cardeaes effectivamente apresentaram a D. Pedro Mascarenhas os pontos sobre que o papa resolvera deferir fa- voravelmente ás supplicas dos christãos-novos. Debatida a matéria, depois de examinada pe- los advogados da coroa escolhidos pelo em- baixador, a questão veio a cifrar-se em duas resoluções importantes, acerca das quaes os cardeaes declararam positivamente que o papa não cederia. Era a primeira, que nos proces- sos por heresia se communicassem aos réus, não sendo estes pessoas poderosas, os nomes das testemunhas de accusação : era a segun- da, que do conselho geral da Inquisição hou- vesse recurso sempre para a sancta sé. Conhe- cendo que todas as diligencias para mover Ghinucci e Del Monte eram baldadas, porque se limitavam a dizer que não eram senão in- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 267 terpretes da decisiva vontade do pontifica, o embaixador pediu que, ao menos, se lhe desse espaço para communicar á sua corte aqueíla resolução, e receber instrucções. Nem isso, porém, pôde obter. Os cardeaes respondiam a todas as ponderações de D. Pedro que não estavam auctorisados para conceder seme- lhante mora, e que o conhecimento que lhe haviam dado daquelle assumpto fora pura formalidade, visto serem as deliberações to- madas negocio de consciência para o pontí- fice, e não assumpto de controvérsia diplo- mática (1). Duas causas urgentes chamavam, portanto, D. Pedro Mascarenhas á conferencia promet- tida para Viterbo, onde effectivamente foi al- cançar o papa e onde encontrou já Santiqua- tro. Alli, em Montefiascone e em Orvieto, per- seguindo com instancias incessantes o ponti- fice. pôde obter que a minuta da nova bulia acerca da Inquisição fosse revista pelos car- deaes Santiquatro e Jacobacio de accordo com (1) Carta de D. Pedro Mascarenhas a elrei de 19 de setembro de 1539 (Correspond. Orig., f. 252). Esta carta comida da tinta e ditflcil de ler (bem como a de 10 do mesmo mez) acha-se em extracto assas ni- lido a f. 150 do códice 268 HISTORIA DA INQUISIÇÃO Del Monte; e posto que não viessem a modi- ficar-se nas conferencias as resoluções ado- ptadas, o embaixador chegou com a própria insistência e com o favor de Santiquatro a alcançar que a expedição definitiva da bulia declaratória se não verificasse antes de se en- viar copia delia a D. João iii (1). Entretanto, esta concessão não foi feita sem condições assas restrictas. A primeira era entender-se que os ires annos concedidos aos christãos- novos, para serem julgados nos casos de he- resia segundo as formulas estabelecidas para os processos crimes ordinários, ficavam in petto (mentalmente) prorogados desde logo, visto estar a expirar esse praso marcado na bulia de 23 de maio de 1536: a segunda era que a resposta d'elrei deveria chegar imprete- rivelmente até 15 de novembro, alliás expe- dir-se-hia a bulia declaratória: a terceira con- sistia em intimar elrei os inquisidores, logo que chegassem as cartas do embaixador, pa- ra não innovarem a forma do processo até ulterior resolução: a quarta e ultima vinha a ser que, dada a hypothese de não chegarem essas cartas senão depois de haver expirado o praso dos três annos, se porventura se ti- (1) Ibid. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 269 viesse já prendido algum christão-novo e co- meçado a processar com as formulas ordina rias da Inquisição, ficaria o processo suspen- so até final resolução sobre a matéria. Por outra parte, os três pontos em que o papa declarava estar firmemente resolvido a não ceder eram que o infante fosse demittido do cargo de inquisidor-mór; que se estabelecesse de modo positivo o recurso para Roma, que, finalmente, se posesse como regra commu- nicarem-se os nomes das testemunhas de ac- cusação aos réus, não sendo estes pessoas poderosas, reservando para si o pontifice de- signar quaes deviam ser incluídos nessa ca- tegoria. O embaixador obrigou-se ao cumpri- mento das quatro condições, sob a pena que o papa lhe quizesse impor. A mais certa ga- rantia, porém, destas convenções, no sentir de Paulo iii, era o direito que tinha de acabar com a Inquisição, se ellas não fossem cum- pridas (1). Entretanto, para que a primeira condição podesse effectivamente realisar-se, expediu-se de prevenção um breve ao núncio, estatuindo que, apenas expirasse o praso dos três annos relativo á ordem do processo dos (1) Carta de D. Pedro Mascarenhas de 21 de se~ lembro, na Correspond. Orig., f. 181. 270 HISTORIA DA INQUISIÇÃO réus de heresia, continuasse a seguir-se o mesmo systema, emquanto se não chegava a accordo definitivo sobre aquelle assumpto (1). Gommunicando a elrei estas resoluções, D. Pedro Mascarenhas expunha com franqueza a sua opinião e o estado verdadeiro das cou- sas. Tinha feito quanto humanamente era pos- sivel para combater as intentadas declarações. A discussão plácida, as scenas violentas, em que de parte a parte se descera até as inju- rias grosseiras (2), tudo fora inútil para com o papa e Del Monte. Não esperava, portanto, que as ponderações enviadas de Portugal ti- vessem mais força que as suas e as do car- deal protector. Se quizessem allegar, para se não revelarem os nomes das testemunhas, as vinganças dos christãos-novos contra ellas, cumpria provar o perigo com factos e não com vagas declamações; porque os christãos- novos provavam com documentos indubitá- veis as perseguições que lhes faziam e as de- (1) Breve ao núncio de 22 de setembro, na Symni., vol. 31, f. 418 v. (2) «nunca passou nenhum dia em que Santiqua- tro e eu nom combatêssemos com lio Papa e com Monte a tu por tu, sofrendo alguas vezes más pa- lavras e disendo outras semelhantes»: Carta de D Pedro Mascarenhas de 21 de setembro, 1. cu. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 271 monstrações de malevolencia que lhes davam; e não se contentando de apresentar esses do- cumentos na Rota ou ao papa, tornavam-nos públicos pela imprensa. Espraiando-se em elo- gios ao infante D. Henrique e á sancta inten- ção com que eirei o posera á frente do tribu- nal da fé, aconselhava, todavia, que elle pró- prio resignasse o cargo. Estava persuadido de que o pontífice não cederia nesse ponto, e de que isso devia custar tanto menos, quanto era certo que se tinha obtido a revocação do núncio, principal fim da nomeiação do infan- te. Quanto ás appelações para Roma, sup- punha que ainda se poderia vencer não se tractar desta matéria na bulia declaratória, con- servando-se a questão irresoluta, como se dei- xara na de 23 de maio de 1536, sem se affir- mar nem negar a existência do direito de ap- pelação, maiormente attendendo a que ainda faltavam sete annos para acabar o praso em que os confiscos eram prohibidos, questão talvez a mais grave para os conversos, e na qual, sobretudo, lhes importaria depois pode- rem appelar para Roma. No que, porém, to- cava á revelação dos nomes das testemunhas» o embaixador promettia a elrei suscitar taes embaraços com as objecções, quando se tra- ctasse de definir quaes eram os réus podero- 272 HISTORIA DA INQUISIÇÃO SOS, que, por fim, de excepções em excepções, viriam a conceder lanto ou mais do que se desejava, ficando quasi todos os chirislãos-no- vos directa ou indirectamente mcluidos nellas e, por consequência, annulladas as vantagens que os mesmos esperavam tirar por esse lado da bulia declaratória (1). No meio destas questões sobre o futuro modo de proceder da Inquisição, tinham acaso esquecido as discórdias do núncio com os in- fantes, ventiladas a principio com tanto fervor? Desde que o papa accedia á revocação de Je- ronymo Ricenati, a contenda tomava um ca- racter benigno, e a necessidade de estampar na fronte do delegado apostólico o ferrete das suas corrupções tornava-se menos urgente. Ao mesmo tempo o papa, que resolvera man- dar julgar a causa de Ayres Vaz pelo cardeal D. Aífonso conjunctamente com o núncio, advertido de que seria impossivel fazer con- correr os dois adversários a esse acto, irrita- dos como estavam um contra o outro, bus- cara a solução da diííiculdade em ordenar que o réu, solto sob fiança, viesse justificar- se na cúria romana. Sem deixar de transmit- tir á sua corte este expediente, o ministro poj- (1) Ibid. HISTORIA DA (VQUíSIÇÃO 273 #íuíi»> ponderava, todavia, a inconveniência ae consentir num facto que abriria exemplo para os christãos-novos evitarem o castigo, faeilitando-se-lhes saírem de Portugal para Homa. Usando de uma metaphora vulgar, mas enérgica, D. Pedro Mascarenhas fazia sentir as consecjuencias de um arbítrio que o papa considerava ou fingia considerar como natu- ral e simples (1). Entretanto, um incidente inesperado esteve a ponto de annuUar ou, pelo menos, de retar- dar nos seus effeitos os esforços do embaixa- dor. A larga negociação sobre as duas deci- mas que elle tinha conduzido a termos vanta- josos fora transtornada em Portugal pelo clero, que, com approvação do poder civil, viera a um accordo com o núncio. Não nos dilataremos com um assumpto que não per- tence ao objecto deste livro. Baste saber-se que esse facto foi communicado ao ministro português quando concluíra com Paulo iii um contracto em que, a troco de composição ou resgate comparativamente moderado, se re- mia aquella extorsão, ou, para melhor dizer, em que o papa cedia ao rei o direito de a converter em proveito próprio. Mas a desvan- (1) apara que o iisso nom salte da armada»: Ibid. TOMO II 18 274 HISTORIA DA INQUISIÇÃO tagem politica da inopinada transacç?^ «í^^ia era maior que a económica. D. Pedro, e,s^.ri- bado nas terminantes instrucções que rece- bera de Lisboa, tinha certificado o papa de que elrei cortara todas as relações diplomáti- cas com o núncio depois da affronta feita a seus irmãos, e resolvera não tornar a reno- vá-las por caso algum. O pacto feito em Lis- boa sobre as decimas, cujo conteúdo Capodi- ferro transmittira para Roma, desmentia, po- rém, solemnemente essa affirmativa. Por ou- tro lado, o embaixador tinha já alcançado mandar-se expedir o breve de revocação. m- dependente de ulteriores exames sobre o pro- cedimento do delegado apostólico ; mas, á vista da boa harmonia que esse facto indicava existir agora entre o governo português e o núncio, repugnava ao papa enviar o breve, tanto mais que se tornava necessário dar tempo a Ricenati para realisar os ajustes que fizera. Tal era a situação difficil em que os erros da corte de Portugal collocavam o seu minis- tro, cujo despeito se manifesta de modo nada equivoco na respectiva correspondência (1). (1) Veja-se a longa carta de D. Pedro Mascare- nhas datada de Perugia, com a mesma data da an- lecedente, na Correspond. Orig., f. 173 e segg. JíiSTORIA DA INQUISIÇÃO 2/0 rk Ã>i\ia, todavia, de perseverança, ajudada oe4v\ activa cooperação de Sanliquatro, e tendo lido a arte de persuadir Paulo iii de que a transacção, feita em Lisboa, nem era segura, como aliás o era a celebrada com elle, nem daria provavelmente os resultados vantajo- sos que se esperavam, D. Pedro Mascarenhas chegou a obter a acceitacão de um termo mé- dio entre os dous contractos, obrigando-se a pagar em Roma, dentro de breve praso, a somma convencionada, e fazendo com que fi- nalmente se expedisse o breve de revocação ao núncio, designando- se-lhe o termo para sair de Portugal até 1 de novembro, visto ha- verem desapparecido, com os ajustes definiti- vos sobre o resgate das decimas, todos os pretextos plausiveis para ulteriores demo- ras (1). Mas o papa, se, por um lado, fazia conces- sões importantes, temperava, por outro, o con- tentamento do embaixador com uma resolução que não menos lhe contrariava as pretensões. Posto que houvesse convindo em retardar a expedição da bulia declaratória relativa á In- (1) Carta de D. Pedro Mascarenhas de 4 de outu- bro, na Correspond. Orig., f. 193. — Carla de Sanli- quatro de 1 de outubro, ibid. f. 239. 276 HISTORIA DA INQUISIÇé quisição, tinha-0 feito no presupposto "^"^ of'^. se dilataria a saída do núncio até r-se appro- ciar devidamente de que lado estava a rajjifío na sua contenda com os infantes, e até se íiie poder enviar successor. Agora, porém, que as circumstancias mudavam, entendia que não lhe era permittido abandonar os conversos, visto que, além de ser chegada a epocha em que cessavam para elles as garantias do pro- cesso civil ordinário nos julgamentos da In- quisição, ia sair de Lisboa o único homem que, pela auctoridade de que estava revestido, podia ampará-los efíicazmente contra os ódios e perseguições injustas dos seus figadaes ini- migos. Nesta parte, Paulo iii mostrava-se fir- me, e a perseverança e insistência do embai- xador e de Santiquatro luctaram em vão com a sua inabalável vontade. Ou consentirem na conservação do núncio ou na expedição da bulia declaratória. Deixava ao arbítrio delles a escolha entre estas duas soluções (1). D. Pedro Mascarenhas teve, portanto, de ceder. Ao passo que se redigia o diploma pontifício, pelo qual se aclaravam as disposi- ções da bulia de 23 de maio, e se determina- (1) ibid. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 277 vam melhor os limites da acção dos inquisi- dores em relação aos conversos, o ministro português recebia o maço fechado da corres- pondência do pontifice para Capodiferro, onde se continha o breve de revocação. Remetten- do-o para Portugal, D. Pedro Mascarenhas demittia de si qualquer responsabilidade acerca do modo por que esse breve fora redigido, visto que se lhe dera fechado (1). Desconfiava de tudo quanto partia da corte de Roma, e por isso avisava o seu governo de que, fos- sem quaes fossem as palavras do breve, a declaração feita pelo papa, de que os poderes de Ricenati como delegado apostólico cessa- riam desde o momento em que o recebesse, e de que a sua demora em Lisboa não pas- saria além de 1 de novembro, tinha sido ca- tegórica, e Santiquatro tomara delia por es- cripto uma nota que enviava. Não deviam, portanto, em caso algum consentir-lhe o me- nor acto de jurisdicção, nem admittir que se conservasse no reino mais um dia além do praso marcado. Pelo que, porém, dizia res- peito á bulia declaratória, consolava elrei, não (1) «porque eu, senhor, não vy o l)revo nem sey o que se nele mais confemi): Ihinam ha quem na contradiga, nem tenha di- nheiro posto em honquo»: Ihid. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 327 palmente as graças rendosas da sé apostóli- ca pela Penitenciaria-maior, e Santiquatro era o penitenciário. Quando havia núncio em Por- tugal, por este corriam quasi todas ellas com detrimento de Santiquatro. Que mais podero- so incentivo para avivar o zelo do cardeal pro- tector {í)f Consumido por vigilias e cuidados, arruinada a própria fortuna, e o que mais era, a saúde, D. Pedro suspirava havia muito pe- lo momento em que podesse aproveitar a per- missão d'elrei para voltar á pátria. Postas as cousas nos termos em que se achavam, só uma circumstancia demorava a sua partida. Era a feitura do promettido breve. Depois de se haverem adoptado sucessivamente duas ou três redacções, este foi afinal expedido, mas pouco depois suspenso. Tinham-no redi- gido os cardeaes Pucci, Del Monte e Ghinuc- ci. Agora o papa ordenava que fosse revisto por este ultimo e pelos dous ex-nuncios Sini- gaglia e Gapodiferro. A balança começava ou- tra vez a pender para o lado dos conversos. A nova commissão accrescentou uma circums- tancia importante, que a primeira havia omit- (1) «porque he (o cardeal Santiquatro) ainda mais syoso da ida dos núncios que eu, mesturando ho serviço de V. A. com o seu imteresse»: Ibid. 328 HISTORIA DA INQUISIÇÃO tido. Foi a determinação de um praso, o de quatro mezes, para elrei responder. Era uma limitação obviamente sensata. Debalde o em- baixador, a quem isto constara, forcejou para, ao menos, ampliar esse periodo. Tudo foi inú- til; e D. Pedro Mascarenhas, cuja decadência physica lhe não consentia uma viagem rápida, teve de enviar o breve por um expresso, para dar tempo a D. João iii de adoptar pausada- mente um arbítrio dentro do praso fatal (1). Apesar da modéstia, talvez bem pouco sin- cera, com que na sua correspondência D. Pe- dro Mascarenhas se declarava inferior ás dif- ficuldades das negociações de que fora in- cumbido relativas ao tribunal da fé, ninguém as teria por certo conduzido melhor do que elle durante a sua larga residência em Roma, porque as circumstancias com que teve de luctar foram tão complicadas e difficeis como o leitor viu. Póde-se dizer que, partindo de Roma, deixava os christãos-novos numa si- tuação mais precária que nunca; e todavia estes tinham empregado naquelle periodo os mais extraordinários esforços para salvar-se. Os seus triumphos haviam sido ephemeros, e (1) Carta de D. Pedro Mascarenhas de 11 de mar- ço de 1540, na Corresp. Orig., f. 221 e seg. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 329 fora elle quem lh'os inutilisara. Effectivamen- te, a situação resumia- se agora em proseguir a Inquisição como d antes, e não faltariam expedientes para alongar a epocha, senão de uma resposta qualquer ao breve que se expe- dia, ao menos de uma conclusão definitiva sobre o assumpto. O interesse da corte por- tuguesa consistia em não resolver nem fazer cousa alguma. Legitima ou illegitimamente, o infante arcebispo continuaria a ser inquisidor- mór, e, tendo-o por chefe, os inquisidores de- senvolveriam livremente as suas tendências ferozes. A vinda de um núncio, que, peitado pelos conversos, podesse protegê-los, estava addiada até se chegar a um accordo entre as duas cortes; além de que, neste ponto o pró- prio interesse tornava Santiquatro o melhor dos procuradores. O embaixador saiu, portan- to, de Roma no meiado de março, deixando incumbido o italiano Pêro Domenico, agente ordinário d'elrei, de vários negócios de menos monta, que trazia pendentes e que não poda- ra terminar (1). (1) Ibid. e carta do dicto, datada de Modena a 2 de abril : Ibid. f. 226 e seg. — Na G. 10, M. 11, N.» 27, no Arch. Nac. está a lista de varies papeis deixados pelo embaixador a Pêro Domenico. Entre elles ha 330 HISTORIA DA INQUISIÇÃO O breve que D, Pedro Mascarenhas remet- tera antes de partir, e para cuja redacção fi- nal tinham sido ouvidos os ex-nuncios Sini- gaglia e Capodiferro, parecia dever collocar D. João III na necessidade de vir em breve a um accordo difinitivo. Além de se marcar ahi o praso para a resolução sobre os confiscos, declarava-se que as duvidas sobre a idonei- dade do infante D, Henrique para ser inquisi- dor-mór se resolveriam conjunctamente com esfoutro negocio, vista a mutua dependência de ambos (1). Esse alvitre, porém, a que se recorria era inefficaz; porque, desapressados do núncio os inquisidores, e conservada a In quisição no anterior estado, tanto o provisó- rio da situação desta, como a falta de confir- mação do infante podiam prolongar-se inde- finidamente. Accrescia que, faltando ainda seis annos para se completar o periodo de dez, em que, segundo a bulia orgânica de 1536, os bens dos sentenciados pela Inquisição fi- alguns relativos ao processo de Ayres Vaz, que da carta de D. Pedro Mascarenhas de II de março, aci- ma citada, se vê ter sido solto, deixando-o ir a Ro- ma seguir a sua appelação para o pontifico. (1) Breve de 10 de março de 1540, no M. 7 de Bulias N.° 17, no Arch. Nac. HISTORfA DA INQUISIÇÃO 331 cavam aos seus herdeiros, a demora em dar o caracter de perpetuidade a esta jurisprudên- cia não tinha inconveniente algum practico. Havendo o papa declarado que a abstenção dos confiscos legitimava as pretensões d'elrei nas outras matérias relativas á Inquisição, nada mais razoável do que manter-se tudo na situação em que estava, embora nada se ti- vesse concluído no fira dos quatro mezes mar- cados para a resposta da corte de Portugal. O único ponto que podia suscitar serias de- savenças era o da enviatura de um núncio, se as diligencias dos christãos-novos vencessem a opposição de Santiquatro. Ahi estava o pe- rigo. Parecia extremamente plausível que um delegado pontificio podesse examinar de per- to o procedimento dos inquisidores, e tanto mais plausível se tornaria semelhante provi- dencia quanto maiores fossem os clamores dos conversos contra as injustas perseguições de que eram victimas. Foi de feito nesse cam- po que, como veremos, veio depois a renovar- se a lucta. O anno de 1540 e os primeiros mezes de 1541 parece terem passado sem que entre as cortes de Lisboa e de Roma se alevantassem de novo as discussões tempestuosas que, des- de 1533, as agitavam por causa do tribunal 332 HISTORIA DA INQUISIÇÃO da fé. As precedentes considerações explicam aquella temporária bonança, e não admira a falta que se observa de memorias e documen- tos relativos ao assumpto durante esse perío- do. Provavelmente os ministros de D. João iii adoptaram o systema das dilações, da hesita- ção calculada, que em ta es circumstancias era o mais conveniente. Não cessavam, nem po- diam cessar, entretanto, os esforços dos con- versos para melhorarem a própria situação. A tenebrosa procella, que os ameaçava desde 1536, não espalhara a principio tantos estra- gos como se presumia: agora, porém, o tro- vão rebentava com maior fragor, e as cente- lhas desciam a fulminá-los, cada vez com mais frequência. A perseguição crescia e or- ganisava-se. Sentia-se, emfim, que a Inquisi- ção portuguesa ia adquirir aquelle caracter de terribilidade que no resto da Península tor- nara tão temida essa instituição anti-christan. Effecti vãmente, é desde 1540 que achamos multiplicarem-se os processos por delictos contra a fé com sigular rapidez (1). Em logar (1) Examinando-se os archivos da Inquisição da Torre do Tombo, verifica-se este facto. Os proces- sos de 1533 a 1536 são raros, e os de 1536 a 1539 são ainda poucos. È de 1540 a t5í7 que o seu numero HISTORIA DA INQUISIÇÃO 333 opportuno traçaremos o quadro das atrocida- des commettidas neste anno e nos immedia- tos, atrocidades que proporcionavam á cúria romana pretextos plausíveis para seguir a po- litica vacillante de que tantos proveitos aufe- ria, interpondo a sua auctoridade entre a In- quisição e os christãos-novos, quando por es- se meio podia despertar a gratidão da raça proscripta ou o temor dos seus implacáveis perseguidores. Agora cumpre referir factos, que, alheios a principio ao objecto deste livro, vieram a influir no progresso da lucta entre D. João III e os seus súbditos hebreus, ser- vindo ás vezes para explicar as phases por que essa lucta passou até a consolidação de- finitiva do tribunal da fé, O bispo de Viseu D. Miguel da Silva, irmão do conde de Portalegre, era naquella conjun- ctura escrivão da puridade, cargo de que fora cresce rapidamente. Na verdade, quando se extin- guiu o Sancto-Officio, em 1820, e posteriormente, dis- traliiram-se muitos processos. E' natural, até, que, no decurso do tempo, dos próprios cartórios do tri- bunal saíssem outros muitos. Entretanto, essas per- das abrangem processos de todas as epoclaas da existência da Inquisição, e portanto a proporção en- tre anno e anno na successão clironologica ficou sendo pouco mais ou menos a mesma. 334 HISTORIA DA INQUISIÇÃO revestido em 1525 e que, dadas as diíferenças do tempo, equivalia ao de ministro do reino, As circumstancias da nomeiação de D. Mi- guel ligam-se intimamente com os successos occorridos quinze annos depois. Tinha elle si- do educado em França e em Itália, distin- guindo-se na sua mocidade por subidos dotes litteraiios. Enviado a Roma como embaixador d'elrei D. Manuel em tempo de Leão x, alli i'enovara com os homens superiores que or- navam a corte pontifícia, foco de todo o bri- lho das sciencias e das lettras naquella epo- cha, as suas relações da juventude. Quizera o papa retê-lo perpetuamente alli, dando-lhe a purpura cardinalicia; mas, ou fosse por um movimento de gratidão e patriotismo, ou por- que outras eram as suas ambições, D. Miguel preferiu continuar a servir o seu soberano e a pátria. Subindo ao ihrono pontifício, Cle- mente VII pensou em elevar o embaixador português á dignidade que este já uma vez recusara e que, segundo parece, agora se mos- trava propenso a acceitar. Soube-o D. João iii, cuja politica era não consentir houvesse um súbdito seu cujas prerogatives ecclesiasticas o fizessem hombreiar com os membros da familia real. O antigo embaixador foi manda- íjo retirar, sendo substituído por D. Martinho HISTORIA DA INQUISIÇÃO 335 de Portugal. Chegado o novo agente a Roma, D. Miguel da Silva quiz mostrar, pelo seu procedimento, que era digno daquella situa- ção a que o queria elevar um principe extra- nho e que lhe negava seu rei natural, a quem longamente servira. Declarou ao papa que a sua tenção era obedecer e sair immediatamen- te de Roma para Lisboa. Na verdade o sacri- fício não era tão grande como pelas apparen- cias se poderia conjecturar. Nos vivos desejos que tinha de obstar ao engrandecimento do seu ministro juncto da cúria, D. João iii não pou- para as promessas de ho ^ as e benefícios, promessas que, aliás, mal se cumpriram. Che- gando a Portugal, D. Miguel da Silva foi, na verdade, eleito bispo de Viseu e nomeiado para o eminente cargo de escrivão da purida- de (1). Exercia-o então D. António de Noro- (1) A historia da primeira epocha da vida do ce- lebre D, Miguel da Silva encontra-se, não tanto na Lusitânia Purpurata de Macedo, no opúsculo de Pereira Portugueses nos Concilias Geraes, ou na Memoria sobre os Escrivães da Puridade de Tri- goso, trabalhos assas imperfeitos, como nos breves de 7 e 30 de julho de 1525 e de 23 de março de 1526, no M. 26 de Bulias N.»^ 21, 22, 23, e nas cartas do mesmo D. Miguel e de D. Martinho de Portugal, no C. Chronol., P I, M. 30, N.o^ 55, 59, 61, 62, 63, 66, e 336 HISTORIA DA INQUISIÇÃO nha, conde de Linhares, cunhado do bispo; mas este, de cerlo modo, reputava já sua aquella dignidade, por ter sido escrivão da puridade de D. João iii quando príncipe. Con- firmado nella, na occasião em que fora revo- cado, porque elrei se compromettera a isso com Clemente vii, logo que chegou á corte quiz exercer pessoalmente o officio. O cunha- do valido e ainda parente do soberano, dispu- tou-lhe a posse, d'onde procederam entre os dous contendas que se protrahiram por alguns mezes. A dignidade episcopal não lhe custou menos dissabores: a apresentação ao papa, a impetração da bulia para dispor de vários be- nefícios da sua sé, tudo lhe foi embaraçado por muito tempo. Espalhavam-se acintemente rumores contra o seu procedimento moral, que, de feito, podia não ser dos mais severos, tendo vivido em verdes annos na corte de M. 32, N.°s 56 e 60 no Arch. Nac, Lan -a, também, grande luz sobre essa primeira epocha uma espécie do manifesto publicado por D. Miguel em resposta á carta regia de 23 de janeiro de 1542, pela qual foi banido do reino, resposta que temos de aproveitar largamente. A biographia do cardeal da Silva que mais rasleja a verdade, posto que ás vezes seja ine- xacta, é a de Fr. Luiz de Sousa, nos Annaes de D. João III, P. 2, cap. 9. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 337 Leão X. Faziam- se, além disso, inquéritos ex- tra-officiaes tendentes a desacreditá-lo, sendo o secretario António Carneiro, que principal- mente o hostilisava, adversário de temer. Obri- gado a abandonar as suas esperanças do car- dinalato, dando-se-lhe com tão visíveis signaes de repugnância as compensações que o pró- prio Clemente vii pactuara para elle, todas es- sas demonstrações de malevolencia deviam azedar-lhe o animo, e tornar perennes os sen- timentos entre o bispo ministro e os seus ini- migos, que nunca mais o deixaram readqui- rir a confiança do soberano. Effectivamente, exercendo D. Miguel da Silva as funcções ex- ternas e oficiaes de primeiro ministro, Antó- nio Carneiro e, depois, seu filho Pedro de Al- cáçova foram sempre aquelles por cujas mãos passavam os negócios de maior vulto, e de quem elrei fiava os segredos mais importan- tes do estado (1). A accessão de Paulo iii ao sólio pontifício parece ter renovado no bispo de Viseu os desejos e as esperanças de revestir a purpu- ra. No tempo em que estivera em Roma, (1) Decreto contra il signore D Michela da Silva et Risposta ai detto Decreto, etc, na Symm., vol. 29, f. 83 e segg. TOMO II 22 338 HISTORIA DA INQUISIÇÃO havia contrahido com o novo papa, então car- deal Farnese, estreita amizade, e as humilha- ções porque o faziam passar eram incitamento assas forte para se aproveitar das circums- tancias que o favoreciam. Não é de suppor que a affeição de Paulo iii fosse tão viva, que se lembrasse de um estrangeiro e ausente para o associar ao sacro collegio : o mais cri- vei é que o bispo ministro sollicitasse a pro- moção. Fosse como fosse, é certo que em de- zembro de 1539 o papa creou D. Miguel car- deal, reservando a sua nomeiação in petto, isto é, deixando de a publicar, visto que D. Miguel estava ausente (1). Em breve, um suc- cesso imprevisto pareceu vir facilitar ao bispo de Viseu a fruição da nova dignidade. Já dissemos que a principal causa por que D. João III oppunha viva resistência á elevação ao cardinalato de qualquer dos seus súbditos era a invencível repugnância que tinha a que algum delles podesse hombreiar com o infante (1) OJdoino, nas addições a Ciacconio (Vitae Pon- tif. vol. 3, col. 676), affirma que dos monumentos do Vaticano consta ter sido feita a eleição de D. Miguel da Silva no consistório secreto de 12 de dezembro de 1539, conservando-se in petto até 2 de dezembro de 1541. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 339 D. Aífonso. A morte, porém, deste, occorrida em abril de 1540, devia destruir esse emba- raço. Não succedeu assim. Tomou D. Miguel por pretexto para se dirigir a Roma o cha- mamento que o papa fizera para o concilio que se delineava ; mas ao sollicitar a licença d'elrei recebeu uma recusa positiva. Negando- Ihe a permissão pedida, D. João iii dava-lhe de conselho que se fingisse doente; mas, como era de prever, o animo do prelado achava-se naquella conjunctura possuído do mais profundo horror a mentir a Deus e ao seu vigário na terra. Todavia elrei, que, affei- çoado ás cousas ecclesiasticas, não era, ape- sar da sua pouca educação litteraria, inteira- mente hospede nas subtilezas e distincções casuísticas, observou-lhe que, tendo elle pade- cido uma longa doença, não seria precisa- mente mentir dizer para Roma que ainda se considerava enfermo (1). A estes conselhos para practicar uma fraude que não convinha ao bispo oppôs elle formal resistência, decla- (1) «mi disse ch'io mi fingessi ammalalo, ai clie risposi. . . che noa volero mentire a Dio né ai Papa, e dicendo-mi ch'io era stato molto tempo ammalato, e che uon era mentire, risposi, etc.»: Risposta di D. Michele etc, 1. cit., f. 92 v 340 HISTORIA DA INQUISIÇÃO rando que nenhuma consideração o obrigaria a ficar em Portugal quando outro era o seu dever. Para obviar ás intenções manifestadas pelo prelado ministro, espalhou-se. e talvez sem calumnia, que este communicara para Roma o que se passava. Verdadeira ou si- mulada, a cólera d'elrei subiu então ao ultimo auge. D eram- se ordens secretas para o bispo ser trazido de Viseu, onde se achava, prepa- rando-se entretanto uma torre para nella se lhe dar pouco agradável hospedagem; mas elle, que andava presentido, desappareceu certa noite dos paços episcopaes e, saindo do reino, dirigiu-se a Itália, aonde o chamavam os seus ambiciosos desígnios (1). Sabida a nova, es- creveu-se logo a Santiquatro e a Christovam de Sousa, que succedera a D. Pedro Masca- renhas na embaixada de Roma, para que nar- rassem ao papa aquelle extranho successo e lhe requeressem que, se o fugitivo prelado ahi chegasse, não lhe desse ouvidos e nem se- quer o recebese. Após estas cartas, foi en- viado um agente extraordinário, Jorge de (1) Ibid. — Instrucções sem data (talvez a Baltha- sar de Faria) acerca dos negócios do bispo de Viseu e da Inquisição: CoUecção de Mss, de S. Vicente, vol. 3, f. 134 e segg., no Arch. Nac. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 341 Bairros, para tractar especialmente daquelle assumpto. Emquanto se tomavam estas pro- videncias hostis, ordenava-se a partida de D. Jorge da Silva, filho do conde de Portalegre e sobrinho do fugitivo prelado, para que tra- balhasse em reduzi-lo a voltar á pátria. Le- vava cartas d'elrei para D. Miguel redigidas por Pedro de Alcáçova, as quaes eram um mo- delo de dissimulação. Com doces palavras tentavam convencê-lo de que commettera uma imprudência em fugir a occultas do reino, e de que devia voltar, ao menos para guardar as apparencias e como prova de sujeição, po- dendo depois sair livremente, conforme lhe aprouvesse. Para aífastar todos os receios mandava-se-lhe uma carta de seguro solemne em que se lhe affiançava a vida e a liberda- de. Conhecia, porém, o bispo a corte de D. João m, tinha amigos poderosos no seu paiz, e d'aqui recebia avisos do que se tramava. O sobrinho havia-o encontrado em Plasencia, e para D. Miguel retroceder era-lhe forçoso passar pelos estados de Carlos v. Sabia que o imperador fora prevenido pelo cunhado acerca da sua fuga, sendo o embaixador cas- telhano quem mais trabalhava contra elle em Roma. Sabia também que os ministros e magistrados rio império não eram obrigados 342 HISTORIA DA INQUISIÇÃO a respeitar um salvo-conducto só valido em Portugal. Effectivamente, as ordens para o prenderem tinham-se enviado por toda a par- te (1). A' astúcia oppôs uma audácia que nãQ excluia a dissimulação. Escreveu a D. João iii, declarando que com rendida submissão vol- taria á pátria, se lhe dessem carta de seguro, não d'elrei, de quem se não temia, mas dos seus inimigos. Mais de uma vez fora amea- çado de morte, até na presença do monarcha, por pessoas a quem não podia dar condigna i-esposta (2). A sua vida carecia de segurança; a sua honra de desaggravo. Os apontamentos das providencias que requeria para regressar eram taes, que pareciam impossíveis de con- ceder : o seguro real seria contra todos os (1) Risposta de D. Michele, 1. ciL., f. ')7. (2) Acaso eram os próprios infantes ; «che uno di quelli miei nemici in presenza di S. A. e senza re- verenza alcuna, aveva detto contra di me clie un giorno aveva a diventar donnola per iscanare un vescovo, e che non l'aveva fatio insino aJlora, non per rispetto delle, scommuniclie, ma di S. M., e che ancora non sapeva qual che farebbe; e che altro disse a me, parlandomi dei mio venire a Roma ai conciho, che se io mi partivo, egh con sue proprie mani mi ammazzarebbe: e erano persone a cht to non potevo risponderev : Ibid. f. 98 HISTORIA DA INQUISIÇÃO 343 que podiam maltractá-lo sem distincção de jerarchia ; os infantes escrever-Ihe-hiam com promessas de se lhe dar satisfação e com to- das as demonstrações de benevolência ; os seus calumniadores seriam punidos ; elrei não faria indagações acerca do seu procedimento, nem daria ouvidos aos seus emulos ; elle iria residir na sua diocese, expulsando- se de Vi- seu os individuos que designava ; ausente da corte, continuaria a ser escrivão da puridade, servindo em seu logar quem elle quizesse (6). Emfim, exigia quantas cousas podiam excitar o animo irritado d'elrei a uma negativa com- pleta. Succedeu, porém, o contrario. Não tar- dou a receber um alvará, em que se lhe con- cedia quanto mostrava desejar Acompanha- vam o diploma cartas delrei e dos infantes, nas quaes não se poupavam as expressões de benevolência. Da mesma linguagem se usava, falando do bispo, com seu irmão o conde de Portalegre. Tudo, portanto, devia mover D. Miguel a regressar á pátria ; e effe- ctivamente, D. Jorge partiu de Plasencia com cartas de seu tio em que annunciava que volta- ria com a maior brevidade. Nem a tenção, po- (1) Instrucções sem data, na Collecção deMss.de S. Vicente, 1. cit. 344 HISTORIA DA INQUISIÇÃO rém, d'elrei era cumprir as amplas concessões que fizera, nem a do bispo vir metter-se nas mãos dos seus inimigos. Mentia-se de parte a parte. Após D, Jorge da Silva, saíra de Portugal para Itália um certo capitão Correia, munido de avultadas sommas e acompanhado de sol- dados e espias disfarçados que seguiam D. Miguel por toda a parte. Esse homem fizera revelações imprudentes acerca de quem o enviava, e acerca das ordens que recebera para o bispo ser assassinado (1). Se acredi- tarmos o que este depois dizia, aquelle sicário fora assalariado por um dos infantes por or- dem d'elrei (2). Saindo de Plasencia para Bo- lonha, Correia seguiu-o, persuadido de que elle ignorava as suas intenções. O prelado ti- nha-se, porém, prevenido, e o assassino an- dava vigiado. Na carta a elrei, enviada por mão do sobrinho, D. Miguel alludira com arte a esse facto, attribuindo tão indigno procedi- (1) Risposta de D. Michele, 1. cit, f. 100 v. e 101. (2) «mas ainda alevantou que o Ifante o mandava matar por ordenança de S. A.»: Instrucrões sem data, no Mss. de S. Vicente. — No manifesto de D. Miguel da Silva diz-se vagamente que Correia fora mandado por pessoa que assistia aos consellios do rei. HISTORIA DA INQLilSIÇÃO 345 mento, não a elrei, mas aos seus implacáveis inimigos, e pedindo ao monarcha lhe servisse de escudo quando se achasse de volta, por- que quem tão longe o mandava assassinar não lhe pouparia a vida em Portugal. Pas- sando por Bolonha naquella conjunctura o. bispo de S. Thomé, frade dominicano e pes- soa bemquista na corte, o foragido prelado encarregou-o de contar em Lisboa o que vira e, por assim dizer, palpara. Mais de uma vez D. Miguel tivera em seu poder o assassino, e elle próprio lhe dera fuga para salvar a honra da coroa de Portugal (1). Não respondeu elrei directamente ás cartas do bispo, mas ordenou ao conde de Portalegre e ao arcebispo de Lisboa que lhe escrevessem, declarando-lhe que elle achava justos os seus temores, e que daria todas as providencias necessárias para o defender de quaesquer ciladas. Longe estava D. Miguel da tentação de nellas cahir ; mas continuou a dar demonstrações em con- trario, demonstrações que deviam justificá-lo depois. Pediu um salvo-conducto para passar pelos estados de Carlos v : negou-lh'o o im- perador. Contava com isso. Esta negativa, que (1) Risposta de D. MicheJe, i. cit. 346 HISTORIA DA INQUISIÇÃO tinha por fundamento as soUicitações feitas pela corte de Portugal, provava que as pro- messas, as concessões, a linguagem benévola desta não passavam de laços armados á sua credulidade. De accordo, provavelmente, com o papa, partiu então para Veneza, onde devia residir emquanto não chegava a conjunctura opportuna para ser publicamente proclamado cardeal (1). Estas mutuas mensagens e respostas, e as intrigas subterrâneas de que eram acompa- nhadas protrahiram-se durante os últimos mezes de 1540 e por grande parte do anno seguinte. Com os avisos de Portugal, Santi- quatro, o embaixador Christovam de Sousa e Jorge de Bairros haviam feito todas as de- monstrações para obstar ao que, talvez, sup- punham apenas uma pretensão de D. Miguel da Silva e que, na realidade, era um facto consumado, embora ainda não offlcialmente conhecido. A's representações por parte de D. João III, em que se lhe narrava a fuga do bispo e se lhe manifestavam as benévolas in- tenções do monarcha acerca delle, o papa respondera acceitando também um papel na- (1) Ibid. — Instrucç. sem data, 1. cit. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 347 quella comedia de mútuos enganos, em que, aliás, ninguém, provavelmente, era enganado. Encarecendo o seu profundo pezar pelo pro- cedimento do prelado, promettera fazer os últimos esforços para o persuadir a voltar á pátria (1). E' de crer que este compromisso de Paulo iii fosse o principal motivo de D. Miguel da Silva ir estabelecer por algum tempo a sua residência em Veneza. Todavia, naquella lucta de dissimulação e deslealdade, os ministros de D. João iii tinham irreflexiva- mente dado armas ao seu adversário, á força de pretenderem illudi-lo para o colherem ás mãos. Nas cartas escriptas em nome d'elrei havia-se reconhecido a legitimidade de todos os queixumes do bispo, e dado um testemu- nho imprudente dos seus dotes pessoaes e dos seus longos serviços, ao passo que o ódio do soberano se dissimulava debaixo das expressões de illimitada aífeição. Transmit- tidas para Roma, estas cartas, que desmen- tiam a linguagem dos agentes de Portugal, tiravam toda a força ás suas supplicas (2). Na própria carta dirigida ao papa, as queixas (1) Breve de 11 de outubro de 1540, no M. 25 de Bulias N." 51, no Ar eh. Nac. (2) Instrucç. sem data, 1. cit 348 HISTORIA DA INQUISIÇÃO misturavam-se com as promessas de honras e benefícios para o foragido. Qual era a con- sequência de tudo isso ? Era que a purpura assentava bem nos hiombros de um homem tào digno e que tanto se desejava tornasse para Portugal. O que principalmente obstava ás ambições, já meias realisadas, de D. Mi- guel, eram as insinuações de Carlos v e as diligencias do seu ministro em Roma, opposi- ção muito mais seria do que a d'elrei, numa corte que, sobretudo, respeitava as conve- niências politicas (1). Ao passo que se agitava esta questão, in- significante em si, mas que a ambição de um velho clérigo e o orgulho, ou antes a vaidade, d'elrei e dos seus irmãos davam uma impor- tância que ella não tinha, tractava-se na cúria romana negocio mais grave. Os prasos limi- tados a D. Pedro Mascarenhas, para se con- cluir um accordo entre elrei e o papa acerca da Inquisição e dos conversos, tinham pas- sado havia muito nos meiados de 1541, sem qae se chegasse a conclusão alguma. Ao me- nos, como já advertimos, não se encontram (1) Carta de Christovam de Sousa a elrei de 8 de dezembro de 1541 : Collecção de Mss. de S. Vicente, vol 1, f. 139, no Arch. Nac. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 349 vestígios nem de negociações nem de actos pontifícios relativos ao assumpto desde a par- tida de D. Pedro Mascarenhas de Roma na primavera de 1540 até essa epocha. A intole- rância caminhava em Portugal desassom- brada. Entretanto, os christãos-novos, ater- rados pelo desenvolvimento que tomara a per- seguição, concentravam todos os seus esfor- ços em obterem o único meio de salvação ou, pelo menos, de allivio, a que, na sua situação, podiam aspirar.Não deixavam, comtudo, de tam- bém insistir na expedição da bulia declaratória que não chegara a intimar-se, acrescentando-se- -Ihe novas e mais terminantes provisões, e de sollicitar que se abolissem por uma vez os confiscos, o que tudo lhes promettera Paulo iii por intervenção de Capodiferro (1). Não se ignoravam em Portugal estas promessas e aque- las diligencias, porque o próprio papa assim o annunciara a Christovam de Sousa, conce- dendo-lhe apenas dous mezes de espera para que podesse communicar á sua corte a reso- lução em que estava de attender ás supplicas dos perseguidos. Deram-se, por isso, mais apertadas instrucções ao embaixador para se [1} Memonale: Symm : vol. 31, f. 59 v. 350 HISTORIA DA INQUISIÇÃO oppor á nomeiação de novo núncio, as quaes chegaram a Roma nos princípios de agosto, na conjunctura em que o papa ia partir para Lucca, onde havia de encontrar-se com o im- perador, para tractarem de vários assumptos politicos (1). Era preciso aproveitar o tempo. Numa audiência que obteve, Christovam de Sousa leu ao pontífice, vertendo-as ora em latim ora em italiano, as instrucções que re- cebera do seu soberano acerca da enviatura do núncio (2). O papa, acabada a leitura e ouvidas as ponderações do embaixador, er- gueu-se visivelmente agastado e, passeiando pelo aposento, repetia o signal da cruz. Na sua opinião, era o demónio quem inspirava (1) Pallaviciao, L. 4, c. 16.— C. de Clirist. de Sousa de 9 de dezembro de 1541 : Collecção de S Vicente, vol. 1, f. 149 V. (2) E curioso o que a este respeito se lê na carta de Christovam de Sousa de 9 de dezembro : «Jhe declarey ás vezes em latim ho que me parecia que S. S. não entendia bem ; e a necessidade me forçou ha saber ha lingoagem italiana, porque crea V. A. que ametade não emtendem do que se lhe fala em português, e quanto melhor falado he ou escrito muito menos o alcançam , e se quasi ha sustancia do que se escreve tomam, ao menos do primor de bem escrever estam bem longe.,, HISTORIA DA INQUISIÇÃO 351 tão dezarrazoada insistência (1). A nuncia- turam devia pedi-la de Portugal, em vez de a repellir ; porque alli achavam prompto des- pacho com menos dispêndio os que sollicita- vam graças da sé apostólica. Pelo que dizia respeito á Inquisição, afíirmava que ninguém podia duvidar do direito e dever que elle ti- nha de vigiar, por um delegado seu, o proce- dimento dos inquisidores, contra os quaes tantos queixumes subiam ao sólio pontifício ; que a appelação para o núncio era inevitável, e que lhe cumpria ter tanta mais vigilância em impedir as violências e injustiças nasci- das do ódio dos christãos-velhos contra os novos, quanto era certo que a responsabili- dade moral dos actos da Inquisição recahia principalmente sobre elle, que a instituirá. A estas ponderações accrescentou um sem nu- mero de outras que o faziam considerar a residência de um núncio em Portugal como questão em que lhe não era licito transigir. Seguindo as tradições do seu antecessor, Christovam de Sousa replicou audazmente ; porque estava bem informado dos motivos que induziam o papa a tanta obstinação. Diogo António, que não procedera, segundo (1) «elle avia que isto era obra do imigo»: Ibid. 352 HISTORIA DA INQUISIÇÃO parece, com mais limpeza de mãos do que Duarte da Paz, fora substituído como procu- rador dos christãos-novos por um certo Diogo Fernandes Neto, individuo de maior confian- ça. A este subministravam os chefes da raça hebréa em Portugal avultadas quantias por intervenção de Diogo Mendes, christão-novo riquíssimo, estabelecido em Flandres. O car- deal Parisio, que, sendo ainda professor em Bolonha, escrevera largamente a favor dos hebreus portugueses, era agora o protector delles, e o leitor, que já conhece quaes fossem os costumes da cúria romana, adivinha por certo as causas que o moviam a protegê-los. Fernandes tinha-lhe prometido avultadas quan- tias no caso de se obter o restabelecimento da nunciatura, e o próprio Paulo iii devia re- ceber por isso oito ou dez mil cruzados, ao passo que o futuro núncio desfructaria uma pensão mensal de duzentos e cincoenta cru- zados (1). Taes eram os contractos repugnan- (1) «tem ofíerecido darem-lhe os chrislãos- novos (ao nuncioj duzentos e cincoenta cruzados cada mez, e dá ao papa oyto ou dez mil; não afirmo quantos dá, mas sei que dá: e asi a este Pariseo.» C. de Chrislovam de Sousa de 2 de dezembro de 1541 : Collecção de S. Vicente, vol. 1, f. 135 v. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 353 tes que inspiravam a renovada piedade da cúria romana pelas victimas da Inquisi- ção. Esses actos de flagrante immoralidade, occultos aos olhos do vulgo, mas sabidos pelo embaixador português, habilitavam este para responder com energia ás estudadas ponderações de Paulo iii. Tinha verdades amargas que oppor aos seus pretensos es- crúpulos. Lembrou-lhe que havia muitos indi- viduos na cúria que soUicitavam o cargo de núncio em Portugal, e que por isso era licito suspeitar que influia mais o interesse privado do que o da justiça no animo daquelles que sustentavam a conveniência de se manter em Lisboa um delegado apostólico. Os pretenden- tes não ignoravam que Sinigaglia levara para Itália o melhor de trinta mil cruzados, e que outro tanto teria levado Capodiferro, se as tempestades e os corsários turcos lhe não houvessem destruido o fructo das suas rapi- nas. Interrompido pelo papa, que tentava de- fender a honra dos dous ex- núncios, Christo- vam de Sousa reduziu-o ao silencio, recor- dando-lhe que os actos de corrupção de ambos eram tão notórios que não admittiam duvida, e que no próprio tribunal da Rota romana fora Sinigaglia inhibido das suas TOMO IT 23 354 HISTORIA DA INQUISIÇÃO íuncções e excommungado por motivos que, de certo, não eram para elle honrosos. A au- diência ia tomando o caracter de altercação violenta. A's allusões pungentes que saíam da boca do embaixador respondia o papa com a contumácia que era própria do seu caracter e que neste caso parecia legitimar as suspei- tas que sobre elle se lançavam. As únicas concessões que fazia eram enviar o núncio só temporariamente e limitar-lhe os poderes. Neste apuro, Christovam de Sousa procurou reduzi-lo pelo temor. Pediu-lhe licença para expor em consistório publico os motivos por que o governo português se oppunha á en- viatura do núncio. Tinha instrucções e avisos de Portugal, além dos que lhe patenteiava, para fundamentar perante o sacro collegio a sua insistência. Ao mesmo tempo declarou- Ihe formalmente que, sendo o principal pre- texto que se tomava para enviar a Lisboa um delegado apostólico os queixumes contra a Inquisição, o seu soberano preferia a suspen- são do tribunal a acceitar o agente de Roma. Mas esta suppressão absoluta, acabando a contenda entre elrei e a raça hebréa, seccava uma fonte caudal de proventos para a cúria, ao passo que a publicidade da discussão, para que appelava Christovam de Sousa, era HISTORIA DA INQUISIÇÃO 355 O que mais temia o papa (1). Guardando si- lencio por largo espaço e vacillando no meio de encontrados impulsos, Paulo iii despediu, emfim, o embaixador, promettendo-lhe que abandonaria os seus designios, se os cardeaes que estava resolvido a consultar sobre o as- sumpto entendessem que nesse acto de con- descendência não faltava aos seus deveres de supremo pastor. Sabendo que os membros do sacro coUegio com quem o papa consultava então semelhantes matérias eram os cardeaes Carpi, Teotino e Parisio, Christovam de Sousa recorreu a todos os meios para os tornar fa- voráveis, bem como o cardeal Farnese. Ao mesmo tempo escrevia a Santiquatro, que então se achava em Pistola, pintando-lhe com vivas cores o perigo da situação, perigo com- mum para elles, cujos interesses, como pe- nitenciario-mór, padeceriam igualmente com o restabelecimento da nunciatura. Pucci diri- (1) «e o cardeal Santiquatro me disse que nenhúa cousa mais atalhara ao papa que dizer-lhe eu que pois nhuncio hia por caso da Inquisição, que a ti- rasse e não mandasse niiuncio, e também com di- zer-lhe que me desse licença falar-lhe em consistó- rio pruvico cousa cpie elle mais areçêa»: C. de Christovam de Sousa de 9 de dezembro de 1541, 1. cit. 356 HISTORIA DA INQUISIÇÃO giu immediatamente uma carta a Farnese e outra ao papa, a qual lhe devia ser entregue pelo embaixador. Carpi, Teotino e Farnese promettiam a este inteiro favor, e o próprio Parisio lhe fazia crer que não se opporia for- malmente ás suas pretensões. Emfim o pon- tífice, partindo de Roma nos últimos dias de agosto, assegurava a Christovam de Sousa que em Lucca tomaria uma resolução defini- tiva sobre a questão da nunciatura (1). Entretanto o procurador dos conversos não estava ocioso. Tanto em Roma, como se- guindo Paulo III na sua viagem, não cessava de lhe representar publicamente contra as ty- rannias dos inquisidores, exaggerando-as. Se- gundo affirmava, as fogueiras ardiam de con- tinuo, e as masmorras estavam atulhadas de milhares de presos. Valera-se o papa daquel- las affirmativas para tornar numa questão de consciência a enviatura do núncio. Negava, porém, o embaixador o facto, e até alguns conversos, entre os quaes se contava Ayres Vaz, o astrólogo, confessavam haver exagge- ração nas queixas de Diogo Fernandes (2). (1) Ibid. (2) Carta de Christovam de Sousa de 2 de de- zembro, 1. cit. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 357 No meio das intrigas que resultavam dessa lucto e que a protrahiam, o papa levava após si o embaixador de cidade em cidade através dos estados pontifícios, sem resolver cousa alguma e sem, ao menos, o escutar Era me- lindrosa a sua situação. Pretendia e esperava obter para seu neto, o cardeal Farnese, uma pensão sobre os redditos da abbadia de Al- cobaça, e por isso importava-lhe não romper abertamente com D. João iii. Por outro lado, as offertas dos conversos não eram de des- prezar. Convinha, pois, conciliar os dous inte- resses, e as dilações offereciam um meio se- guro de chegar a esse fim. Por diligencias de Santiquatro, que se ajunctara em Pistola á comitiva do pontífice, e tendo o embaixador recebido despachos de Portugal, em que era possível vir resolvida a pretensão de Farnese, o papa concedeu uma audiência em Bolonha a Christovam de Sousa. Mas os ministros de D. João iii também eram astutos, e a mercê esperada por Farnese não chegara. Tractou-se a questão da nun- ciatura. As mutuas reconvenções da ultima audiência em Roma repetiram-se nesta ainda_ com mais violência. Santiquatro falou com ardor, invectivando Sinigalia e Capodi ferro. Inspirava-o sobretudo o próprio interesse 358 HISTORIA DA INQUISIÇÃO íerido (1). A consciência, porém, do papa recolirara novos brios, e os clamores dos conversos levavam-no a manter a resolu- ção em que dera mostras de afrouxar. O calor do debate e os Ímpetos da cólera afu- gentavam o decoro, e o ruído das vozes de- sentoadas obrigou o camareiro do pontifice a fazer despejar a sala contigua para evitar o escândalo (2). No meio da discussão, o papa chegou a confessar que o futuro núncio rece- beria dos conversos um subsidio mensal, no que elle, com grande espanto do embaixador, não via inconveniente algum, tal era a per- versão das idéas na cúria romana. Invocava Christovam de Sousa certas phrases que Paulo III proferira perante o geral dos fran- ciscanos sobre as intenções que tinha de con- descender com os desejos de D. João iii ; mas elle negou que taes palavras importassem a (1) «o cardeal Santiqualro falou aqui mais do que eu não cria dele, ainda que lhe a ele importa muito não hir nhuncio, porque não terá sua penitenciaria nenua expedição deses reinos» : Carta de Christo- vam de Sousa de 8 de dezembro de 1541, 1. cit. (2) «e com assaz ou sobeja cólera nestas prati- quas mui altas e já quasi desentoadas, de modo que o camareiro do papa despejou a outra casa porque nos ouviam mui craro»: Ibid. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 359 idéa de trahir os deveres do supremo pastor e pae commum dos fiéis, se os desejos do soberano estivessem em contradicção com esses deveres. Numa nova audiência em Bo- lonha, o embaixador convenceu-se, em fim, de que Parisio e os demais protectores dos chris- tãos-novos, ou, para melhor dizer, o ouro e as promessas destes preponderavam na cúria. O despeito e o cansaço de tão aturada lucta in- citavam-no a sair por alguns dias daquella atmosphera de intrigas e prevaricações. Pre- cisava de ar e de espaço. Paulo iii tinha-lhe promettido não tomar nenhuma resolução de- finitiva sem lh'a communicar : não havia, por- tanto, perigo em abandonar por algum tempo o séquito do pontífice. Partiu, pois para Ve- neza, d'onde devia vir encontrar a oomitiva papal em Rimini, na sua volta para Roma (1). Vimos anteriormente que o bispo D. Miguel da Silva fora residir em Veneza emquanto não se dava a opportunidade de ser declarado solemnemente cardeal. Apenas soube ter alli chegado o embaixador, buscou- o. Fugira Chris- tovam de Sousa desse dédalo de astúcias e deslealdades chamado a cúria romana, mas (1) Ibid. 360 HISTORIA DA INQUISIÇÃO encontrava em Veneza um homem digno de figurar entre os curiaes pela dissimulação. Duas horas durou a visita, e por duas horas se repetiram os protestos do bispo acerca dos seus vivos desejos de voltar a Porlugal. Estava profundamente commovido pelas car- tas d'elrei e penhorado pelas demonstrações de benevolência que tinha ultimamente rece- bido do monarcha e de seus irmãos. A ob- servação, um pouco irónica, do embaixador, de que lhe era fácil matar as saudades da pá- tria regressando sem detença á sua diocese, replicou o artificioso prelado que só esperava para o fazer a vinda de seu sobrinho com as ultimas ordens d'elrei a semelhante respeito. Consolavam-no tão somente da tardança os serviços politicos que em Veneza tinha occa- sião de fazer á coroa. Na exposição destes serviços buscava, porventura, sondar o animo de Christovam de Sousa, ou obter delle algu- mas revelações, mas os seus esforços foram baldados, porque o embaixador estava preca- vido pelo mau conceito que formava de D. Miguel. Na sua opinião, o bispo vivia, falava e procedia como se fosse italiano, dizendo sempre uma cousa por outra ; porque em Itá- lia o sysiema adoptado para tractar qualquer negocio consistia, sobretudo, em nunca fa- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 361 lar verdade (1). Tomando por pretexto as pou- cas horas que tinha para ver Veneza, Chris- tovam de Sousa despediu o bispo, evitando por este modo alguma indiscrição involuntá- ria. Poucos dias depois, tendo voltado da sua excursão, seguia o papa de Rimini até Roma, mostrando-se para com elle mais obsequioso do que nenhum outro cortezão, e escondendo assim o seu profundo despeito. Era que tinha sabido aproveitar as licções da diplomacia itahana (2). Paulo III regressara á sua capital nos últi- mos dias de outubro. Os resentimentos que as discussões ardentes de Bolonha podiam ter suscitado deviam achar- se inteiramente mitigados com as mostras de resignação da| das pelo embaixador português, e este não abandonara de todo as suas esperanças. As- sim, aos redobrados esforços dos agentes dos christãos-novos para o prompto despacho do núncio oppunha diariamente novas pon- derações e supplicas. Chegou a offerecer de novo, por parte d'elrei, a abstenção (1) «fala, vive e obra como italiano, que sempre vos dizem húa cousa por outra e am que he muyto bom modo de negociar»: Ibid. (2) Ibid. 362 HISTORIA DA INQUISIÇÃO perpetua dos confiscos. Era uma offerta illu- soria, na opinião do papa; porque a Inquisi- ção exorbitava de tudo e quebrava todos os principios, tendo, pouco havia, sido queima- dos alguns conversos, depois de lhes acceita- rem a appelação interposta para Roma; além de que, suppondo que ainda houvesse alguma cousa que se respeitasse, não era por em- quanto necessário tractar a questão dos con- fiscos, visto faltarem ainda dous annos para terminar o período em que delles estavam exemptos os réus de judaísmo. Negando os actos odiosos de que a Inquisição era accu- sada, o embaixador suggeriu, por intervenção de Santiquatro, um arbítrio, contra o qual parecia não haver a oppor cousa alguma ra- zoável. Era mandar-se a Portugal, á custa d'elrei, um letrado hábil que syndicasse do procedimento dos inquisidores, decidindo-se depois a questão da enviatura ou não envia- tura do núncio conforme o resultado do in- quérito. Agradou geralmente o arbítrio aos cardeaes; o papa acceitou-o por fim, talvez cansado de importunações, e a idéa de des- pachar immediatamente um delegado apostó- lico esmoreceu por algum tempo. Entretanto, o embaixador apressava-se a communicar á sua corte a concessão que obtivera, prevê- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 363 nindo elrei a tempo, a fim de poder peitar o syndicante e dictar-lhe as informações conve- nientes para se combater com vantagem o restabelecimento da nunciatura (1). Aconse- lhava, além disso, que por nenhum modo perseguissem os procuradores dos conversos ou os que lhes subministravam recursos, o que produziria péssimo eífeito em Roma, bus- cando-se outro qualquer meio para tornar menos activos os primeiros e menos genero- sos os segundos. Esse meio que, aliás, o em- baixador não apontava, era obviamente a cor- rupção (2). No mesmo dia, porém, em que Christovam de Sousa annunciava para Portugal um ac- cordo que, se não decidia a questão, tornava possível, comtudo, addiando-a, uma solução mais conforme com os desejos de D. João iii, verificava-se um facto que, necessariamente, devia trazer o rompimento entre as duas cortes. D. Miguel da Silva era nesse dia pro- clamado cardeal e chamado a tomar assento (1) «e se for es(e letrado será causa de não hir nhuncio, porque dará a emformação conforme as obras que V. A. Jizer, e mandar que dê»: Carla de Christovam de Sousa de 2 de dezembro, 1. cit (2) Ibid. 364 HISTORIA DA IMOUISIÇÃO no sacro collegio (1). Porque esta manifesta- ção se demorara tanto, ou porque apparecera em tal conjunctura não nos seria fácil dizêlo. O mesmo mensageiro, por quem o embaixa- dor transmittia a elrei o estado dos negócios pendentes e as phases por 'que estes ha- viam passado nos últimos mezes, trouxe, pro- vavelmente, a noticia daquelle impensado suc- cesso (2). O papa e o bispo haviam, emfim, tirado a mascara . podiam também tirá-la o rei e os seus ministros. As blandícias, as pro- messas, os convites para voltar á pátria, com que tinham procurado colher no fojo o astuto velho, eram desde agora inúteis. Assim, a manifestação do despeito e do ódio, compri- mida por tanto tempo, deixara de ser incon- veniente. O primeiro acto do governo foi ex- pedir uma carta regia fulminante contra o novo cardeal. Expunha-se ahi o procedimento do prelado á luz mais odiosa ; mas, como era (1) Ciacconius, T. 3, col. 076. (2) Sendo, conforme Ciacconio, proclamado D. Miguel a 2 de dezembro de 1541, é notável que em nenhuma das três cartas de Christovam de Sousa, escriptas nesse mez com as datas de 2, 8 e 9, haja a minima aliusão a semelhante facto. Deve ter existido outra carta sobre essa matéria, que não chegou até nós. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 365 natural, occultava-se a causa verdadeira do castigo. Nesse notável documento D. Miguel era simplesmente considerado como bispo, e nem sequer havia uma allusão á purpura que revestira, como se ao poder civil fosse licito dei- xar de reconhecer uma dignidade que ao papa e só ao papa pertencia conferir. Os fundamentos daquelle diploma, cuja redacção trahia a cólera cega que a inspirara, eram que o bispo, cheio de cargos e honras, obrigado por seus jura- mentos a servir lealmente elrei, e como vas- sallo a obedecer-lhe, saíra a occultas de Por- tugal contra a expressa prohibição do sobe- rano, levando comsigo papeis que continham segredos do estado, e que existiam em suas mãos como escrivão da puridade, a quem se communicavam os mais importantes negó- cios ; que, depois disto, revocado á pátria por um excesso de benignidade, e favorecido com uma carta de seguro para voltar sem receio de castigo, se mantivera pertinaz na desobe- diência, actos que o tornavam indigno de perdão. Assim elrei privava- o do cargo e de todas as honras e mercês que recebera da coroa, desnaturando- o da pátria e tirando-lhe os direitos de cidadão. Esta excomunhão po- litica estendia-se a todos os que seguissem o ausente prelado, com elle tivessem correspon- 366 HISTORIA DA INQUISIÇÃO dencia, ou tractassem de negócios seus. A ninguém seria permittido celebrar com elle nenhuma espécie de contracto gratuito ou oneroso, nem legar-lhe em testamento cousa alguma, ou ser seu herdeiro. Deste modo o orgulho do rei devoto fulminava o réu de car- dinalato ainda além da sepultura (1). A este acto, deshonroso para a magestade do throno, suppostos os motivos que o ins- piravam, seguiu-se uma viva demonstração de despeito contra a corte de Roma, demons- tração que todas as deslealdades e torpezas de que o próprio D. João iii por mais de uma vez a accusara nunca tinham podido arrancar á corte de Portugal. Expediu-se um expresso a Christovam de Sousa para que, se o papa não desse nesse caso condigna satisfação, elle e Jorge de Bairros saíssem de Roma (2). É notável que, bem como D. Henrique de Meneses e como D. Pedro Mascarenhas, (1) Carta regia de 23 de janeiro de 1542, em An- drade, Chron. de D. João iii, P. 3, c. 8iJ.— Sousa, Annaes de D. João ni, P. 2, c. 9. — Instrucç. sem data, na CoUecção de Mss. de S. Vicente, vol. 3, f. 134. (2) Carta de Christovam de Sousa de 16 de feve- reiro de 1542 (assas lacerada), no C. Chronol., P. 3, M. 15, N.o 70, no Arch. Noc— Sousa, Annaes de D, João III, 1. cit. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 367 Sousa, respondendo á carta d'elrei, agrade- cesse a este a mercê de o tirar da capital do mundo catholico ; dessa Roma que compa- rava á prostituída Babilónia, e onde os pou- cos dias que lhe restavam de demora eram para elle como se jazesse no inferno (1;. A brevidade com que o embaixador con- tava voltar a Portugal nascia da falta da exi- gida satisfação ; posto que, na verdade, esta fosse difficil de dar. Não podia o pontífice demittir D. Miguel da dignidade cardinalícia, e feó esse acto insólito applacaría o animo ir- ritado delrei. Paulo iii, porém, estribava a le- gitimidade do seu procedimento, não na im- possibilidade de retroceder, mas sim nas car- tas dirigidas officialmente e extra-officíal- mente ao bispo de Viseu para o illudir, e cujo contexto elle opposera sempre ás representa- ções de Christovam de Sousa e de Jorge de Bairros. Desenganados da inutilidade de ulte- riores diligencias, o embaixador e o seu co- lega abandonaram a corte de Roma, tendo occultado ao próprio Santiquatro as instru- (1) «a mercê de me mandar hir desta Babilónia de confusões» : Carta de Christovam de Sousa, cit. — «e estes dias que estou em Roma me parece que estou no inferno» : Ibib. 368 HISTORIA DA INQUISIÇÃO cções recebidas, até o dia em que pediram ao papa a audiência de despendida (1). Obriga- va-os a essa reserva o receio de que, sabido o rompimento entre as duas cortes, se liies negasse a expedição de vários negócios já resolvidos ; e receiavam-no porque coniieciam a Índole da cúria romana (2). Revestida a purpura, D. Miguel tirara, em- fim, a mascara. A explosão devia ser tanto maior quanto maior fora a necessidade de oppor durante mais de um anno a dissimula- ção á dissimulação. A' carta regia que o exau- ctorava replicou com uma espécie de mani- festo, onde, salvando até onde era possivel a responsabilidade pessoal de D. João iii, e lan- çando tudo á conta dos seus ministros, reve- lava, ao menos no que lhe convinha, a tor- (1) Instrucyão sem data, na Collecção de S. Vi- cente, l. cit. — Carta de Chrislovam de Sousa de 16 de fevereiro de 1542, ]. cit. As mutilações deste ulti- mo documento nos obrigam a omittir algumas cir- cumstancias que ahi se referiam relativas á reti- rada do embaixador. (2) «porque sei que esta gente de qua he tão bai- xa, que qualquer cousa commetterão, asentei não faJar ao papa senam depois de telas bulas na mão»: Carta de Christovam de Sousa de 16 de fevereiro, 1. cit. HISTORIA DA INQUISIÇÃO 369 peza da corte de Portugal e vindicava o próprio procedimento das accusações formuladas na- quelle diploma, pelo qaal fora condemnado sem processo á morte civil, sendo elrei juiz e parte. Desmentia formalmente a afíirmativa de que, saindo da pátria, houvesse levado comsigo papeis alguns do estado, visto que só nominalmente era escrivão da puridade. Narrava os meios deshonestos a que se havia recorrido para impedir a sua partida para Itália, aonde o chamava o papa, a quem neste ponto era, como bispo, obrigado a obedecer, tractando-se a celebração de um concilio. Lu- dibriava a affectação com que na carta da desnaturação o nomeia vam sempre como bispo de Viseu, e as declarações feitas na cúria por Santiquatro, de que elrei procedia contra o bispo e não contra o cardeal, como se a distincção fosse possível, e não houvesse a mesma quebra da justiça e das immunida- des ecclesiasticas, em se proceder de tal modo contra um prelado diocesano ou contra um membro do sacro collegio. Compendiava todas as affrontas e desgostos que fora obrigado a tragar desde que voltara de Roma a Portu- gal e, sem negar as mercês que recebera de D. Jão III, recordava-lhe que a necessidade de fazer taes mercês lhe fora, a bem dizer, im- TOMO II 24 370 HISTORIA DA INQUISIÇÃO posta por Clemenle vii. invocava a franqueza com que falara ao soberano sobre a sua saída do reino, os alvitres vergonhosos que lhe ha- viam sido inculcados para desobedecer ao pontifice, a dignidade com que elle repellira tão odiosos expedientes. Affirmava que nessa conjunctura se lhe não posera prohibição ex- pressa de sair de Portugal, e só sim quando o quizeram prender sobre pretexto de rela- ções illicitas com a cúria romana. Expunha largamente o que se tinha posto por obra para o persuadirem a voltar á pátria, os elo- gios que se lhe teciam, as artes, em summa, que se haviam empregado para o illaqueiar, ao passo que se procurava fazô-lo cahir de- baixo dos punhaes dos assassinos. Nesta parte o manifesto era fulminante, porque, acerca de todas essas infâmias, D. Miguel in- vocava o testemunho do bispo de S. Thomé, o de Santiquatro e o do próprio Paulo iii. Do facto de lhe recusar Carlos v uma carta de seguro para passar pelos seus estados, com o fundamento de que a isso obstavam as re- commendações que a tal respeito tinha do cunhado, deduziu D. Miguel que seria preso ou ainda morto antes de chegar a Portugal, se não tivesse verificado por esse modo que as expressões de benevolência que lhe diri- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 371 giam de Lisboa eram uma verdadeira cilada ; tanto assim, que, argumentando sua sanctida- de com Santiquatro acerca da innocencia e dos merecimentos delie D. Miguel, e invo- cando o testemunho do próprio governo por- tuguês, dado nas cartas em que D, João iii o revocava á pátria, o cardeal protector decla- rara de plano que taes cartas não passavam de um laço para o colherem ás mãos, e que o resultado só provava que o bispo íora mais astuto do que o monarcha. Terminando pela appreciação das penas que se fulminavam contra elle, ridiculisava o demittirem-no de um cargo que elle próprio resignara officiahrente, e que, decerto, não havia de accumular com o cardiíialato. Fazia-o também sorrir o risca- rem-no do registo dos nobres e vassallos, e esbulharem-no de todas as mercês, bens e ren- das havidas por elle da coroa. Nada tinha desta, salvo o que lhe provinha dos benefícios ecclesiasticos, acerca dos quaes só ao papa tocava dispor. Aquelle vão apparato de espo- liação era, em seu entender, para illudir os ignorantes e fazè lo passar por ingrato ao rei depois de recebidas deste avultadas mercês. Appreciando a parte da carta regia que o ba- nia e privava dos foros de cidadão, mostrava que o governo ultrapassara nisso as suas 372 HISTORIA DA INQUISIÇÃO attribuições e ferira as regras mais triviaes do direito civil e do canónico. Concluía o novo cardeal o seu longo arrazoado, affirmando que em todo aquelle notável documento não havia senão uma cousa verdadeira, o dizer-se que elle se chamava D. Miguel da Silva. Tudo o mais era um tecido de disparates e fabulas (1). Depois de' tantos disfarces e occultos me- neios, a guerra tinha, emfim, rompido impla- cável entre elrei e o cai'deal da Silva. Suppos- tos os termos a que as cousas haviam che- gado, nenhum delles devia esquecer meio algum de mutuamente se offenderem. Um dos que mais obviamente se offereciam a D. Mi- guel consistia em se ligar com os christãos- novos e ser o seu mais enérgico protector na cúria. Hostilisar a Inquisição era ferir elrei numa das suas mais caras affeições, e ao velho prelado não faltavam para isso recur- sos, não só como membro do sacro collegio, mas também como amigo pessoal do papa, circumstancia importante e que tinha dobrada força por se dar igualmente em outro portu- (1) Hisposla di D.Michele; Symm., vol. 29, f.86 e segg.— «deJ quale (decreto) non vcggo che sia parte ne parola alcuna de si possa veriíicare, salvo es- sere 11 nome mio D. Michole»: Ibid. f. 111 v. llISrOUIA DA INQUISIÇÃO 373 guês com quem D. Miguel podia ir de accordo na empresa. Era elle o medico Ayres Vaz, ao qual a Inquisição tivera o desaccordo de con- sentir fosse justificar-se em Roma. Alli, Ayres Vaz achara em Paulo iii um sectário da scien- cia astrológica, e o papa e o hebreu vieram brevemente a unir-se pela simpathia que nasce da identidade de estudos e opiniões. O pontí- fice fez Ayres Vaz seu clérigo, familiar e com- mensal, e para mostrar o apreço em que o tinha, expediu uma bulia na qual exemplava da jurisdicção dos inquisidores, não só todos os parentes, ainda os mais remotos, do seu collega em astrologia, mas até os advogados que em Lisboa o haviam defendido perante o tribunal da fé, bem como as suas respectivas familias (1). Com as esperanças que nasciam destas duas influencias, que parecia deverem ser efficazes, e do rompimento entre elrei e o papa, os agentes dos conversos podiam em- pregar com probabilidade de bom êxito novos esforços para se melhorarem nesse rude com- bate de vida ou morte, que com elles se tra- vara. Incitava-os não só a opportunidade do (1) Bulia de ti do junho de Í54I incluída em oulrp de 15 de março de 1 54-2, no M. 37 de Bulias N.° 49, no Ar eh. Nac. 374 HISTORIA DA INQUISIÇÃO ensejo, mas igualmente o progresso da per- seguição, a qual ia tomando maiores dimen- sões, e se tornava cada vez mais intolerável. A intervenção de D. Miguel da Silva naquelle negocio, e as novas phases por que a lucta passou até o que se pôde considerar como o seu definitivo desfecho, darão matéria ao resto desta tentativa histórica. Desde esse desfecho, as resistências e os esforços dos hebreus portugueses não são mais do que o estrebu- xar da presa moribunda nas garras da besta- -fera. Fica tudo: a atrocidade dos inquisido- res, a dobrez e a cubica da cúria romana, o fanatismo das multidões, a hypocrisia de muitos, e a corrupção de quasi todos; mas falta a esperança, ao menos a esperança fun- dada e plausivel, das victimas. No fim de vinte annos de negruras, de traições, de cri- mes, de villanias de toda a espécie, a Inquisi- ção, assentada sobre solidas bases, cessa de temer a própria ruina. Roma ousa apenas dis- putar-lhe a espaços algumas victimas, e nem sempre nessas disputas Roma obtém o trium- pho. Ao espectáculo variado que temos visto representar, e a que ainda faltam as scenas de um período de seis annos, succede o si- lencio, só interrompido pelo crepitar monó- tono das fogueiras, pelo correr dos ferrolhos HISTORIA DA INQUISIÇÃO 375 nos cárceres que se convertem em sepulchros, e pelos gemidos que se alevantam do meio das lieca tombas. E' a tragedia de Alfieri depois da de Shakspeare. Que o leitor indulgente nos siga ainda através dos últimos recessos deste pandemonio repugnante onde o fizemos entrar e que uma luz sinistra alumia. Aca- bará de convencer se de que a sociedade desses tempos, que ignorantes ou hypocritas ousam propor-nos como modelo, não só es- tava longe de valer a actual, mas também, considerada de um modo absoluto, era pro- fundamente depravada. Não serão illações ou conjecturas nossas que pintarão aquella epo- cha de decadência moral: serão as phrases inflexiveis dos documentos, as palavras dos principaes actores de tão longo drama, que nos subministrarão, como até aqui, a contex- tura da restante narrativa. FIM DO TOMO n índice LíVFiO IV Bulia tlc perdão de 7 de abril de 1533. Appreciação delia — Procedimento da corte de Portugal. — Negociações com o papa em Marselha. — En viatura de D. Henrique de Meneses, e instrucções dadas ao arcebispo do Funchal. — Di- ligencias baldadas em Roma para an- nullar o perdão. Insistências dos em- baixadores. Protrahem-se os debates. O papa resolve definitivamente man- ter a bulia de perdão. Breve de 2 de abril de 1534. — Tentativas de transac- ção propostas por D. Henrique de Me- neses.— Procedimento do arcebispo do Funchal, suas relações com Duarte da Paz, e traições deste. — Resistência em Portugal ao cumprimento da bulia de 7 de abril, e perseguições contra os conversos. — Breve de 26 de julho.— Morte de Clemente vii e eleição de Pau- lo III. Caracter do novo papa. — Reno- vam-se as negociações. — Intervenção do embaixador hespanhol. — O papa manda suspender os effeitos dos bre- Pag. 378 HISTORIA DA INQUISIÇÃO ves de 2 de abril e 2íj de juliio.— No- vos debates sobre a bulia de 7 de abril. — Transacção proposta pela cor- te de Portugal e bases offerecidas pa- ra ella. — Intrigas em Roma. Progres- so da lucta, e resolução final sobre as modificações do perdão e sobro o res- tabelecimento do tribunal da fé. — Con- selhos de D. Henrique de Meneses e do arcebispo a elrei acerca desta matéria. — Dobrez da cúria romana.— Accusa- çôes de Sinigaglia contra o governo português. — Despeito mutuo das duas cortes. - Ajustes vergonhosos do nún- cio com os christãos-novos— Elrei pen- sa em transigir com os conversos pa- ra que acceitem a Inquisição modifica- da.— Reacção do espirito de intolerân- cia.— Revalida-se por mais três annos a lei de 14 de junho de 1532. — Breve de 20 de julho de 1535 annullando os eífei- tos dessa lei. — Diligencias da corte de Portugal para obter a revocação de Sinigaglia, e instrucções aos embaixa- dores para repetirem as tentativas de um accordo. — Idéa de fazer com que Carlos V intervenha energicamente na questão. — Novas intrigas. — Desleal- dade do arcebispo. -Irritação extrema do papa. — Bulia de 12 de outubro re- validando e ampliando a de 7 de abril de 1532. — D. Martinho de Portugal é desmascarado. Mutua malevolencia HISTORIA DA INQUISIÇÃO 379 Pag. entre elle e D. Henrique de Meneses. — Influencia da bulia de 12 de outubro em Portugal . . 8 a 158 LIVRO V Providencias da corte portuguesa para combater as vantagens obtidas pelos christãos-novos Revocação do arce- bispo do Funchal. Intervenção efíicaz e directa de Carlos v no negocio da In- quisição. Tentativa de assassínio con- tra Duarte da Paz. — Questões vergo- nhosas entre os conversos e o núncio na occasião da saída deste de Portu- gal. Effeitos dessas questões em Roma. Triumpho completo do fanatismo. Bul- ia de 23 de maio de 1 536 estabelecendo definitivamente a Inquisição. Primei- ros actos desta. Monitorio do bispo de Ceuta, inquisidor-mór. Procedimento moderado do novo tribunal. — Diligen- cias dos agentes dos conversos em Ro- ma. O papa começa a mostrar-se-lhes favorável. — Enviatura do núncio Capo- diferro, e objecto da sua missão. Ten- dências da cúria romana. Manifesta- ções dessas tendências no breve de 31 de agosto de 1537. Considerações poli- ticas que as atenuavam. — Procedi- mento do núncio. — Enviatura de D. Pedro Mascarenhas á corte pontifícia. ^380 HISTORIA DA INQUISIÇÃO i-'ag. — Escriplos blasfemos afixados publi- camente em Lisboa, e consequências desse facto. O infante D. Henrique subs- íituido ao bispo de Ceuta no cargo de inquisidor-mór.— Negociações de D. Pedro Mascarenhas em Roma. Cara- cter e dotes do novo embaixador. Cor- rupções na cúria romana.— Mudanças no tribunal da fé. — Hostilidades entre o infante e Capodiferro. Processo de Ayres Vaz. Lucta com o núncio. — El- rei exige a revocação deste. Discus- sões violentas e protrahidas entre o embaixador português e o papa, tanto acerca da Inquisição como do núncio. Accordos vantajosos e transtornos mesperados. D. Pedro, não podendo obstar ás providencias favoráveis aos conversos, obtém, comtudo, a revoca- ção de Capodiferro. — Bulia declarató- ria de 4 de outubro de 1539 162 a 284 LIVUO VI Agencia dos christãos-novos em Roma. Substituição de Duarte da Paz. — Últi- mos actos deste. — Inutilisa-se a expe- dição da bulia de 12 de outubro, dei- xando de publicar-se em Portugal. Causas deste facto. Situação desvanta- josa dos conversos. — Prosegue-se na contenda acerca da nomeiação do in- HISTORIA DA INQUISIÇÃO 381 fante D. Henrique para inquisido-mor. — Carta notável d'elrei ao embaixador em Roma, e allegação dos inquisidores contra a bulia de 12 de outubro. Nego- ciações directas entre D. Pedro Masca- renhas e Paulo III. Discussões e scenas dramáticas entre o embaixador e o pa- pa.— Parecer da juncta dos cardeaes encarregada de examinar as réplicas do governo português. Destreza do embaixador, e vantagens que obtém. Sua partida para Portugal. — Situação critica dos chrisiãos-novos. A Inquisi- ção começa a desenvolver maior vio- lência. Cessação temporária das nego- ciações em Roma. — Discórdias d'elrei com o bispo de Viseu D. Miguel da Sil- va. Causas e progresso dessas descor- dias. Fuga do bispo para Itália. Enga- nos mútuos, e tentativas de assassínio. Diligencias em Romn contra o foragi- do prelado, eleito já occultamente car- deal.— A questão da nunciatura em Portugal renova-se entretanto. Nego- ciações de Christovam de Sousa, suc- cessor de D. Pedro Mascarenhas. Vio- lentas discussões com o papa. Esfor- ços dos agentes dos conversos. — Via- gem de Paulo III, e proseguimento das negociações. — Accordo para se addiar a resolução definitiva acerca da nun- ciatu.ra. — D. Miguel é proclamado pu- blicamente cardeal. Carta regia fuimi- 382 HISTORIA DA INQUISIÇÃO Paá. nada contra eJle. — Rompimento entre as duas cortes. Retirada de Christo- vam de Sousa. — Manifesto do cardeal da Silva, que se liga com os conversos em ódio d'elrei. Epilogo deste livro. . . 288 a 375 OBRAS DE Alexandre Herculano Bobo (0) - Romance histórico lOSOO Cartas (Inéditas) ~ 2 vols 20S00 Composições várias lOSOO Estudos sobre o casamento civil .... 10$00 Eurico, o Presbítero— Komdinct 10$00 História da origem e estabeleci- mento da Inquisição em Portugal — 3 vols 30$00 História de Portugal — Nova edição ilustrada com numerosos do- cumentos autênticos — 8 vols 96S00 Lendas e Narrativas — 2 vols 20S00 Monge de Cister (0)— Romance. 2 vols 20S00 Opúsculos— 10 vols. Cada vol lOSOO Poesias: Livro I, A harpa do crente. — Li- vro II, Poesias várias. — Li- vro III, Versões: de Millevoye, Béranger, Délavigne, Lamarti- ne, etc lOSOO